Por um Cerrado mais resiliente

novembro, 14 2024

Nos últimos quatro anos, projeto coordenado pelo WWF-Brasil em parceria com o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) trouxe mais consciência, formação e ação para reverter o quadro atual do bioma, que tem 37% de sua área degradada.
Débora Rubin, especial para o WWF-Brasil 

Um dos maiores biomas do país é, também, um dos mais desconhecidos. Não só por estrangeiros, mas pelos próprios brasileiros. Apesar de invisibilizado, o Cerrado tem papel fundamental na segurança hídrica do país: alimenta importantes rios brasileiros, como o Velho Chico e o Tocantins, e abastece boa parte das veias hídricas da Amazônia. A negligência com o nosso “coração das águas” o transforma em um gigante em declínio.  

Com as fronteiras agrícolas avançando rumo à área conhecida como MATOPIBA (acrônimo para as iniciais dos estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), o desmatamento e a degradação acontecem em larga escala e em ritmo acelerado. Para promover soluções inteligentes para o clima com base na conservação e no uso sustentável dos recursos naturais do bioma, foi criado o Projeto Cerrado Resiliente (CERES).  

Com aporte de 5,9 milhões de euros da União Europeia, o CERES conta com três frentes de atuação nos territórios do MATOPIBA e Mato Grosso do Sul, no Brasil, e em mais uma área do Paraguai. O WWF-Brasil, WWF-Paraguai, WWF-Holanda e o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) foram parceiros no projeto, que teve início em 2020 e se encerrou em setembro de 2024. 

“Ainda são poucos os projetos que focam no Cerrado, a maior parte dos esforços e das verbas vai para a Amazônia, que acaba tendo o grande protagonismo em questão de investimentos”, explica Bianca Nakamato, especialista em Conservação do Cerrado do WWF-Brasil, que coordenou o projeto CERES.  

“Mas, o que precisamos reforçar no entendimento da população em geral e da comunidade científica, empresas, instituições financeiras e doadores, é que a Amazônia está intrinsecamente conectada ao Cerrado. O equilíbrio e os serviços ambientais fornecidos pela Amazônia, como os rios voadores, só cumprem seu papel porque temos o Cerrado em conexão também prestando importantes serviços ambientais, como a absorção das chuvas para nossas nascentes e lençóis freáticos, nos abastecendo de água para vivermos, nos alimentarmos e produzirmos commodities.” 

Espinha dorsal da estratégia de conservação do Cerrado do WWF-Brasil - que engloba combate ao desmatamento, reabilitação de pastagens degradadas, restauração em larga escala do bioma, criação, manutenção e defesa de áreas protegidas e sociobioeconomia -, o CERES foi dividido em três eixos de atuação. O primeiro tem como foco práticas sustentáveis e climaticamente inteligentes nos sistemas de produção; o segundo, tem como objetivo promover a conservação por meio da biodiversidade e das áreas protegidas e, por fim, o terceiro visa a aliança com parceiros públicos e privados na proteção do Cerrado. 

“O nosso principal desafio é quebrar o ciclo histórico e o modelo atual de desenvolvimento que ferem direitos humanos e geram desmatamento e conversão de vegetação nativa nesse bioma”, diz Bianca. “Hoje, metade do Cerrado é agricultura: 93 milhões de hectares. Mais da metade dessa área é pastagem. Ou seja, são 50 milhões de hectares só de pastagem: destes, 37 milhões estão degradados”. 

 Resultados e conquistas 


Como um projeto de diversos braços, múltiplas frentes e inúmeros atores, o CERES conseguiu envolver desde povos indígenas e comunidades tradicionais, até pequenos produtores rurais e grandes empresas de soja e carne. Também chegou a lideranças políticas de municípios e estados. A conscientização do problema e a construção de soluções passou por muitos programas em diversos territórios. 

Para selar o comprometimento de organizações da sociedade civil, pesquisadores e universidades, consultorias e demais partes interessadas em promover a restauração em larga escala no Cerrado, foi criada a ​Araticum, Aliança pela Restauração do Cerrado, e um ​​Mapa de Monitoramento da Restauração do Cerrado, aberto publicamente de forma on-line. Outra ferramenta de acompanhamento em tempo real apoiada pelo CERES é o ​Tamo de Olho, plataforma na qual é possível identificar casos de desmatamento que coincidem com a violação de direitos territoriais de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais. 

Na frente da educação, o ​Cap Gestão Cerrado foi criado para aumentar as capacidades locais de forma a melhorar a gestão de empreendimentos da agricultura familiar, de povos indígenas e comunidades tradicionais do bioma. A ideia é fornecer um material mais atualizado, com informações além das existentes, sobre o que o bioma precisa para seguir como produtor de alimentos de forma sustentável. Também foi realizado o curso ​Cerrativismo, cujo objetivo principal foi a formação de lideranças focadas na proteção do Cerrado no estado do Piauí. 

Outra conquista foi o apoio à estruturação do ​Programa Estadual de Pagamento de Serviços Ambientais (PSA) no Mato Grosso do Sul, para o qual foi mobilizado quase R$ 1 milhão na primeira fase. O programa visa a conservação das florestas e demais formas de vegetação natural privadas e, ainda, a conversão produtiva de pastagens e terras degradadas para usos alternativos da terra com maior armazenamento de carbono. 

Em Bonito, 40 propriedades foram homologadas a participarem da primeira fase do programa, contribuindo de forma direta para a preservação dos mananciais e da qualidade da água. Na segunda fase, sendo implementada agora em 2024, são 86 as propriedades homologadas para o programa. Em troca pelos serviços ambientais que prestam, os proprietários recebem um pagamento. 

Na outra ponta, o Fundo Ecos, mecanismo do ISPN para captação e destinação de recursos para projetos de organizações comunitárias que atuam pela conservação ambiental, atendeu 278 comunidades. “O Fundo Ecos é um mecanismo de democratização de recursos que permite que as organizações da sociedade civil acessem fundos e atuem para a solução de problemas em seus territórios, gerando inclusão social e conservação ambiental”, explica Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado no ISPN. 

Dentro do eixo de sociobiodiversidade, três principais cadeias produtivas foram fortalecidas: o capim-dourado, no Jalapão; o babaçu, no Maranhão e o baru – esta última envolveu a criação de um Grupo de Trabalho que orientou, com estudos e capacitações, 400 famílias de 60 organizações nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais. Para o capim-dourado, as ações feitas em parceria com três comunidades quilombolas do Jalapão (TO) culminaram no lançamento da coleção Jalapoeiras Apuradas, esculturas feitas com o capim-dourado, típico da região. A coleção de design foi apresentada em eventos realizados em Palmas (TO), Brasília (DF) e São Paulo (SP), com a presença das artesãs envolvidas, e contou com a curadoria do designer Marcelo Rosenbaum. 

No Brasil, o Projeto Ceres também possibilitou o desenvolvimento de quatro campanhas publicitárias sobre o Cerrado, que envolveram esforços de mobilização em mídias sociais, eventos presenciais e relacionamento com influenciadores e imprensa em defesa do bioma. As ações em comunicação nesse sentido foram fundamentais para contribuir com a mudança do imaginário a respeito do Cerrado e ampliar o conhecimento sobre o “coração das águas do Brasil”, conforme foi chamado o bioma na campanha lançada em setembro de 2024.  

Já, na área de Cerrado do Paraguai, o grande gol foi o reconhecimento por parte do governo federal paraguaio de uma área protegida de 100 mil hectares, em 2024, que obteve a sua titulação legal após quase 30 anos de criação. Além do treinamento de 82 pessoas em apicultura, incluindo 11 pessoas do povo indígena Yshir.  

Em outra frente, 334 pessoas (incluindo estudantes, prestadores de serviços turísticos e guias) reforçaram as suas capacidades em matéria de observação de aves, vulnerabilidade dos ecossistemas e novas oportunidades na economia local no âmbito do desenvolvimento do ecoturismo, dentro da iniciativa “Rota das Araras”, vencedor do Prêmio Público Excelência no Turismo 2023, em Madri, Espanha. 

Ainda no Paraguai, aconteceu a campanha ​#elcerradonosetoca, que contribuiu para barrar um projeto de rodovia que iria desmatar uma parte considerável do Cerrado paraguaio. Conseguiu também posicionar essa ecorregião, tão desconhecida no Paraguai, com a estreia do primeiro ​documentário de natureza focado no Cerrado, sua biodiversidade e suas ameaças. 

No projeto CERES como um todo, 13.422 pessoas foram treinadas em práticas agrícolas sustentáveis, manejo integrado do fogo e manejo sustentável da biodiversidade. Em relação aos incêndios, que bateram recorde no primeiro semestre de 2024, de acordo com monitoramento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) desde 1998, além da formação de brigadistas em áreas protegidas, foi ensinado o Manejo Integrado do Fogo (MIF), estratégia que associa aspectos ecológicos, socioeconômicos e técnicos com o objetivo de integrar ações para controlar incêndios e prevenir e combater incêndios florestais. 

Legado e futuro 


A ideia do projeto é também trazer o Cerrado para a pauta do dia a dia e entender como o bioma se relaciona com o resto do mundo. A crise climática provocada pela devastação afeta todo o território onde ele está presente de forma intensa: rios que secam, que são desviados, contaminados, a seca crescente e a biomassa inflamável. “Também queremos entender como ele se relaciona com os eventos extremos em outras partes do país, como as enchentes no Rio Grande do Sul”, explica Bianca. 

O projeto se encerra com a sensação de dever cumprido e, ao mesmo tempo, de que há muito a ser feito. O começo da mudança, no entanto, já teve início. “O CERES trouxe materialidade para a nossa estratégia de Cerrado, e deixa de legado informação, formação, ferramentas de monitoramento e muitos multiplicadores. Além de parcerias fortes pela Conservação do Cerrado. Nós já estamos vendo os resultados, que serão ainda maiores através do trabalho conjunto com nossos parceiros”, finaliza Bianca. 
 
O principal desafio do Projeto Ceres é quebrar o ciclo histórico e o modelo atual de desenvolvimento do Cerrado, que hoje tem 50 milhões de hectares formado por pastagens, dos quais 37 milhões já estão degradados.
© Silas Ismael / WWF-Brasil
A restauração do Cerrado é uma das soluções promovidas pelo CERES
© Marcio Sanches / WWF-Brasil
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