Salvar o fogo

dezembro, 02 2024

Para evitar incêndios é preciso preservar a forma como comunidades tradicionais usam o fogo e investir em brigadas – duas frentes incluídas no Projeto CERES, que investiu em ações no Cerrado nos últimos quatro anos
Por Débora Rubin, especial para o WWF-Brasil

Nos primeiros seis meses de 2024, o Pantanal e o Cerrado tiveram a maior quantidade de focos de incêndio já registrada desde 1998, quando as queimadas começaram a ser monitoradas por satélites pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). No Cerrado, foram 12.097 focos detectados de queimadas entre janeiro e junho, um aumento de 32% em comparação ao mesmo período em 2023.  

Mais da metade (53,3%) das queimadas no bioma ocorreu nos quatro estados do Matopiba - Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia-, onde se situa a principal fronteira de expansão agrícola do país. Os quatro estados tiveram aumento do número de focos de incêndios em áreas de Cerrado, sendo no Tocantins o maior aumento de todos: mais 60% em relação a 2023. Outro estado onde o Programa Queimadas do INPE apontou aumento significativo do número de focos no bioma é o Mato Grosso, com um aumento de 85% em relação ao ano passado. 
 
No Cerrado, o aumento do número de queimadas está relacionado à combinação entre as mudanças climáticas e o aumento do desmatamento, que por sua vez está associado à expansão das áreas utilizadas para a agropecuária. O bioma tem enfrentado taxas alarmantes de desmatamento e conversão: em 2023, foram detectados 7.852 km² de vegetação nativa perdidos – um aumento de 44% em relação a 2022. 

Comunidades tradicionais e o fogo 


Em 2020, um levantamento feito no Jalapão, área que abrange os quatro estados do MATOPIBA, detectou quais eram os pontos mais sensíveis nas Unidades de Conservação (UC) do local. O método usado foi o RAPPAM (leia mais no quadro abaixo), e o ponto que mais chamou a atenção foi justamente a quantidade de queimadas na região ano a ano. O levantamento foi feito dentro do contexto do projeto CERES, conjunto de ações do WWF-Brasil realizadas ao longo dos últimos quatro anos no Cerrado. 

O fogo, no entanto, é instrumento de trabalho de muitas comunidades na região. E desde que usado de forma correta e consciente, não se torna uma ameaça ao meio ambiente. “O manejo do fogo é uma das ferramentas mais importantes para as comunidades quilombolas, que o utilizam como instrumento para a produção do capim dourado”, explica Osvaldo Barassi Gajardo, especialista em Conservação do WWF-Brasil, responsável por essa frente no Jalapão, dentro do projeto CERES. O capim que reluz ouro, tão peculiar daquele território, é usado para a produção de artesanato (bolsas, bijuterias, itens de cozinha, entre outros), importante fonte de renda local.  

Osvaldo lembra que para comunidades tradicionais, o fogo pode ser ainda usado para a caça, caso do povo indígena xavante, e para a renovação de pastagem. Por ser de uso secular na região, surgiu ali mesmo, no Jalapão, o conceito de Manejo Integrado do Fogo (MIF), conjunto de ações que têm como objetivo reintroduzir o fogo como uma ferramenta de gestão em ecossistemas propensos a incendiar com mais facilidade. 

Como o uso do fogo já fazia parte da cultura regional, o WWF-Brasil sugeriu às comunidades quilombolas locais a criação de uma brigada comunitária para ajudar na realização de ações preventivas e na detecção de focos de incêndio e combatê-los ou reportá-los a brigadas maiores e profissionais. O trabalho, que já foi feito pela organização anteriormente no Pantanal, onde foram formadas mais de vinte brigadas, e na Amazônia, serviu de base para as oficinas de sensibilização e para o treinamento. As brigadas comunitárias estão capacitadas para realizar o manejo do fogo e a renovação apropriada de pastagens tecnicamente segura. Como nas demais brigadas, foi feita ainda a doação dos equipamentos. 

“A brigada é a primeira resposta ao fogo, é quem detecta os primeiros sinais e pode avisar os combatentes mais experientes, bombeiros, profissionais do ICMBio e do Naturatins (Instituto Natureza do Tocantins, órgão do governo do Estado responsável por executar a política ambiental) a tempo de impedir um incêndio de grandes proporções”, explica Osvaldo. “A brigada formada ali se integra a uma grande rede e, juntos, protegem 716 mil hectares”.  

Para que o trabalho fosse mais  integrada ao território, as ações de áreas protegidas focaram em atuar com instituições locais. Primeiro, foi firmada a parceria com o próprio Naturatins. Em 2022, com a Associação Onça D´água e a Fundação de Apoio Científico e Tecnológico do Tocantins (FAPTO), visando trabalhar especificamente o manejo integrado do fogo. 

Em outra frente, o projeto CERES fez ainda um trabalho de articulação política, garantindo que governos – federal, estadual e municipais – dialoguem entre si e criem um plano de ação contínua de combate ao fogo no Jalapão e no Cerrado como um todo. Afinal, é na soma de todas as ações, do MIF, das brigadas e das políticas públicas, que se cuida do fogo e evita que o Cerrado siga ardendo em chamas. 

Ainda dentro do escopo do fogo, dentro do Projeto CERES, foi realizado um encontro de guarda-parques no Paraguai, com a participação de 44 pessoas incluindo guarda-parques da Bolívia e do Brasil. E a 1ª brigada florestal certificada no Distrito de Bahía Negra, também no Paraguai, foi treinada e equipada. Para cuidar de um único bioma, é preciso uma força-tarefa de muitos estados brasileiros e de dois países. 
 

A importância do Manejo Integrado do Fogo 



O Manejo Integrado do Fogo (MIF) é uma estratégia que associa aspectos ecológicos, socioeconômicos, culturais e técnicos com o objetivo de integrar ações para controlar incêndios, prevenir e combater queimadas florestais. Visa reintroduzir o fogo como ferramenta de manejo em ecossistemas propensos e adaptados a ele por meio do uso de queimadas prescritas e controladas.  

No Cerrado, o MIF envolve não apenas ações de combate a incêndios, mas também de prevenção e planejamento. Passando ainda por atividades de conscientização ambiental, recuperação de áreas degradadas por incêndios e até a seleção de áreas para queimadas prescritas o que, nas palavras de Osvaldo Barassi Gajardo, trata-se de “queimadas controladas apropriadas para redução de biomassa inflamável e, assim, evitar que a área queime de forma violenta a partir de um incêndio acidental”. Dois princípios importantes do MIF em biomas como o Cerrado são a finalidade ecológica do fogo no sistema e o reconhecimento dos saberes tradicionais em seu uso.  

“No Jalapão, é crucial reconhecer o uso tradicional do fogo pelas comunidades quilombolas para o manejo de recursos naturais como o capim-dourado, vital para o artesanato e a renda. Esta prática tradicional fortalece a identidade cultural dessas comunidades e está sendo reconhecida e implementada em várias unidades de conservação no Cerrado, como o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros”, complementa Bianca Nakamato, especialista em Conservação do Cerrado do WWF-Brasil, coordenadora do projeto CERES. 
 

O que é o Rappam? 



O Rappam (Rapid Assessment and Prioritization of Protected Area Management) é um método de avaliação rápido desenvolvido pelo WWF para avaliar e priorizar as estratégias de manejo de áreas protegidas. Não fornece ferramentas para desenvolver políticas públicas, mas entrega diagnósticos para apontar quais devem ser aprimoradas.

A aplicação do método foi realizada pela primeira vez entre 2005 e 2007, em 246 UCs federais brasileiras. Em 2010, o Rappam foi reaplicado no conjunto de 292 UCs federais. O terceiro ciclo se deu em 2015, com 249 UCs avaliadas. Por fim, o quarto ciclo, iniciado em 2022, avaliou a Efetividade de Gestão de 256 UCs distribuídas em diferentes biomas do Brasil. 
No Cerrado, o aumento do número de queimadas está relacionado à combinação entre as mudanças climáticas e o aumento do desmatamento
© Adriano Gambarini/ WWF-Brasil

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