Restaurar a biodiversidade está entre as ações de maior impacto para alimentos sustentáveis
outubro, 09 2024
Estudo do WWF em mais de 100 países destaca o risco de perda do Pampa e do Cerrado brasileiro
Os sistemas alimentares - a complexa rede de atividades que envolve a produção, processamento, transporte e consumo de alimentos -se transformaram na principal ameaça à natureza. Atualmente, 40% das terras habitáveis do planeta são usadas para a produção de alimentos, com 80% dessa área ocupada pela criação de gado e o consumo de 70% da água potável da Terra. Sistemas alimentares causaram 80% do desmatamento global, levaram à perda de 70% da biodiversidade terrestre e geram 30% dos gases que estão mudando o clima. Apesar disso, 10% da humanidade ainda passa fome. Para reverter esse quadro, o WWF acaba de lançar o Quebra-Cabeça Alimentar, ferramenta de pesquisa que mapeia as ações de maior impacto para o desenvolvimento de alimentos mais sustentáveis e adequados para cada um dos mais de 100 países analisados - entre eles o Brasil. Para sua elaboração, nos últimos dois anos, pesquisadores trabalharam com especialistas de todo o mundo para entender o cenário de cada país. Neste primeiro levantamento foram analisados mais de 100 países que receberam diferentes Tipos de Sistemas Alimentares, classificados de 1 a 6, com base em suas características ambientais e socioeconômicas.
O Brasil foi classificado na categoria de Tipos de Sistemas Alimentares 1, assim como Colômbia, Rússia, Indonésia, Peru e Equador. São os países com as maiores concentrações de hotspots de biodiversidade e carbono irrecuperável. Neles, a produção de alimentos é uma mistura de produção industrializada, artesanal e de pequenos agricultores. Além disso, foi detectado que todos têm recursos terrestres e hídricos suficientes (ou quase) para produzir alimentos e atender à demanda doméstica. Quando combinado com níveis moderados de desempenho ambiental, isso coloca as áreas naturais em risco médio de conversão. Alguns biomas, no entanto, extrapolam essa média. É o caso das pastagens dos Pampas, que o país corre o risco de perder devido à expansão agrícola, com grande perda para a vida selvagem, e do Cerrado - a paisagem mais ameaçada em que o WWF atua. Por isso, o estudo aponta que o Brasil precisa estabelecer ações de alto impacto, com o desenvolvimento e implementação de práticas de produção de alimentos que restauram a biodiversidade.
"O recado mais importante do estudo é que o nosso país tem recursos para a produção de alimentos sustentáveis. No entanto, a segurança alimentar continua muito baixa e o risco de conversão é um ponto de atenção. E essa contradição sugere as lacunas nas quais devemos cobrar atuação dos governos e pensar de maneira mais abrangente em iniciativas de conservação. Sim, o desafio é enorme, mas a atuação coordenada entre os setores ambiental e agroalimentar pode tornar o Brasil um exemplo a ser seguido pelo restante do mundo”, Luiza Soares, analista de conservação WWF-Brasil.
A transformação dos sistemas alimentares pode ser a principal solução para as múltiplas crises que a humanidade enfrenta. Ao longo de vários anos, a transformação dos sistemas alimentares começou a ser amplamente reconhecida como crítica para deter e reverter a perda da natureza, limitar o aquecimento global a 1,5° e se adaptar às mudanças climáticas, além de fornecer a todas as pessoas alimentos saudáveis. Embora não exista um conjunto único de intervenções políticas que deva ser aplicada globalmente, a pesquisa identificou 20 alavancas de transformação e chegou a oito conclusões que podem destravar a transformação necessária:
- A transformação do sistema alimentar não é possível sem uma melhor gestão dos recursos naturais. As alavancas de gestão de recursos naturais foram identificadas como tendo alto potencial de impacto na maioria dos países, mas especialmente nos Tipos de Sistema Alimentar 1, ao qual pertence o Brasil, e 2 e 3, que também têm muitas paisagens consideradas pontos críticos do sistema alimentar com risco aumentado de a natureza ser convertida para a agropecuária.
- O potencial da educação para transformar dietas e nutrição deve ser desbloqueado. As alavancas de educação e conhecimento foram classificadas como altas na maioria dos Tipos de Sistema Alimentar, com o aumento da conscientização pública sobre alimentação saudável e a redução do desperdício de alimentos consistentemente identificados como tendo maior potencial de transformação.
- O apoio aos pequenos agricultores deve ser dimensionado e ampliado para criar impacto. As necessidades e questões dos pequenos agricultores se manifestam de várias maneiras nas 20 alavancas de transformação mapeadas no estudo, com o apoio a essas estratégias sendo uma alta prioridade nos Tipos de Sistema Alimentar 2, 3 e 4, que abrigam a maioria da população global e onde os pequenos agricultores dominam a produção de alimentos.
- A transformação dos sistemas alimentares será prejudicada se a infraestrutura não for melhorada. O desenvolvimento de infraestruturas mostra o maior potencial nos Tipos de Sistema Alimentar 2, 3 e 4, onde são necessárias infraestruturas "básicas", como estradas, sistemas de transporte e instalações de armazenamento a frio para facilitar a circulação eficiente de mercadorias e mitigar o risco de deterioração e perda de alimentos.
- Redesenhar as finanças e o comércio é fundamental para todos os países. As alavancas financeiras e comerciais são classificadas especialmente altas nos Tipos de Sistema Alimentar 1 (onde se encontra o Brasil) e 5.
- O fortalecimento das evidências científicas para a produção sustentável de alimentos pode acelerar sua adoção. O fortalecimento da pesquisa e a melhoria da coleta e medição de dados têm alto potencial de impacto na maioria dos Tipos de Sistema Alimentar, mas o foco contínuo na era da revolução verde existente, práticas agrícolas de alto insumo e falta de financiamento continuam sendo barreiras.
- Não há balas de prata – as soluções de alta tecnologia devem ser equilibradas com outras ações. A adoção de métodos de produção de alimentos de alta tecnologia é vista como tendo menor potencial de impacto do que muitas outras alavancas e o foco para a transformação do sistema alimentar deve ser menos sobre o desenvolvimento de novas soluções tecnológicas ou inovações e mais sobre o investimento em soluções acessíveis ou inovações sociais.
- Proteínas alternativas chamam a atenção, mas podem precisar de mais tempo antes de gerar impacto global. O desenvolvimento de proteínas alternativas, como proteínas vegetais ou carne sintética, foi classificado como uma das alavancas de menor potencial na maioria dos países e estava visivelmente ausente da maioria dos rankings de especialistas das 10 principais alavancas em países específicos.
Brent Loken, Cientista Líder Global de Alimentos do WWF, lembra que “os sistemas alimentares são extremamente complexos e são moldados por muitos fatores, incluindo patrimônio cultural, valores e contextos locais. Isso significa que não há balas de prata que funcionem em todos os lugares e revertam o impacto devastador que os sistemas alimentares atuais têm na natureza e na saúde humana. A abordagem do Quebra Cabeça Alimentar ajuda todas as partes interessadas a identificar ações baseadas na ciência com base no contexto local, ou soluções locais, que proporcionaram as maiores vitórias para as pessoas e o planeta no menor tempo possível.”
“Há muitos exemplos de países que já aplicam as ações de maior impacto. No futuro, a abordagem do Quebra Cabeça Alimentar ajudará a acelerar a incrível transformação do sistema alimentar que já está em andamento. Ao encontrar soluções locais e construir coalizões de atores que podem aprender uns com os outros e compartilhar soluções e histórias de sucesso, temos a oportunidade de criar sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis para todos”, concluiu Loken.
Além de utilizar o Quebra Cabeça Alimentar para identificar as ações de alta prioridade e alto impacto em diferentes lugares, o WWF pode apoiar a implementação por meio de seu conjunto de soluções e ferramentas adicionais para agricultores, formuladores de políticas, empresas e consumidores com presença física em mais de 100 países.
Relatos de casos selecionados
Equador (Tipo 1) – Desenvolvimento de cadeias de suprimentos positivas para a natureza
Trabalhando com comunidades indígenas equatorianas para fortalecer as práticas tradicionais de produção de cacau, implementando um sistema de rastreabilidade livre de desmatamento e estabelecendo uma cadeia de suprimentos de longo prazo com uma empresa alemã, garantindo que os agricultores obtenham um preço justo pelos grãos e produtos do cacau.
Filipinas (Tipo 2) – Desenvolvimento da infraestrutura da cadeia de suprimentos
Criação do SoilMate, um aplicativo móvel inovador que torna a compostagem do desperdício de alimentos mais fácil, rápida e segura para empresas e residentes em Manila, para manter o desperdício de alimentos fora do aterro sanitário e fornecer fertilizantes orgânicos aos agricultores locais.
Quênia (Tipo 3) – Apoio aos pequenos agricultores
Estabelecimento de um mercado alternativo de propriedade e administrado por agricultores locais na Bacia de Naivasha, para quebrar a dependência de corretores, minimizar as perdas de alimentos sofridas enquanto os alimentos eram transportados para as cidades e aumentar a disponibilidade de alimentos saudáveis e sustentáveis disponíveis para as comunidades rurais.
África do Sul (Tipo 4) – Adotar métodos de alta tecnologia
Implementar um sistema de alerta precoce alimentado por Inteligência Artificial que pode impedir que as baleias se enredem em cordas utilizadas em fazendas de aquicultura perto do Parque Nacional da Costa Oeste.
Estados Unidos (Tipo 5) – Promover a conscientização pública
Estabelecer um programa educacional que transforme refeitórios em salas de aula, capacitando-os a medir e reduzir o desperdício de alimentos e até mesmo introduzir legislação estadual que aumente o financiamento para sistemas de redução de desperdício de alimentos na escola.
Argentina (Tipo 6) – Otimização do uso da terra
Parceria com pecuaristas em Las Pampas para implementar práticas sustentáveis de manejo pecuário que melhorem a saúde do solo e da água, aumentem a biodiversidade e proporcionem benefícios econômicos significativos aos pecuaristas.