Entrevista com a pesquisadora Lucia Sevegnani
novembro, 17 2011
Entrevista com a pesquisadora Lucia Sevegnani, doutora em ecologia de florestas pela USP e professora do Departamento de Ciências Naturais da Universidade de Blumenau (Furb)
Por Sandra DamianiEspecial para o WWF-Brasil
“Se as reformas no Código forem aprovadas, teremos uma redução drástica da Mata Atlântica”, diz pesquisadora
O mês de setembro de 2011 ficará na história de Santa Catarina como um dos piores desastres ambientais das últimas três décadas. Cem municípios, o equivalente a um terço do estado, foi invadido pelas águas, após uma seqüência de dias com chuvas torrenciais. Casas, estabelecimentos comerciais e rodovias estavam cobertos pela água, deixando a população isolada e sem alimentos. Segundo dados da Secretaria de Estado da Defesa Civil, a inundação afetou quase 1 milhão de pessoas, 178 mil delas tiveram que deixar suas casas. Os prejuízos são estimados em R$ 453 milhões.
Poucos dias após as águas terem recuado e com as cidades ainda em reconstrução, WWF-Brasil foi até Blumenau conversar com pesquisadora Lucia Sevegnani, doutora em ecologia de florestas pela USP e professora do Departamento de Ciências Naturais da Universidade de Blumenau (Furb). Natural de Rio do Sul, uma das cidades mais afetadas pela cheias, no Alto Vale do Itajaí, ela faz parte de grupo de pesquisadores que tem aprofundado o estudo da causas e formas de prevenção ao fenômeno e lançou no ano passado o livro ‘Desastre de 2008 no Vale do Itajaí – Água, gente e política’.
Num momento de discussão do Código Florestal, o estudo do caso catarinense não pode passar em branco. Suscetível à precipitação intensa, solos frágeis e relevo acidentado, o Vale do Itajaí teve sua base de desenvolvimento na derrubada da floresta e ocupação das margens dos rios e encostas. Na entrevista, abaixo a pesquisadora fala da relação floresta e enchente e resume: “A enchente poderia ser pior sem a recuperação obtida nos últimos 20 anos com a Lei da Mata Atlântica.”
Como está a situação das áreas de florestas nesta região atingida pelas enchentes?
No Vale do Itajaí, nós já estivemos numa situação de maior degradação. Um levantamento mostra que hoje estamos com cerca de 60% de cobertura vegetal nesta bacia. Mas a distribuição não é uniforme. Como é comparativamente mais plano e com maior concentração agrícola, o Alto Vale do Itajaí tem a cobertura menor se comparado ao Médio e Baixo Vale do Itajaí. Essa cheia que tivermos em setembro se caracterizou por chuvas fortes, em torno de 220 litros por metro quadrado em três dias. Isso é uma concentração altíssima. Nossa bacia é como um triângulo, mais aberto na porção superior e estreita na sua base. As águas confluem todas para essa direção e as planícies da cidade de Rio do Sul foram tomadas pela água. A região que abastece os rios, o chamado Alto Vale do Itajaí, está mais descoberta de vegetação do que a base. Por isso a importância de restaurar e trabalhar com o agricultor. Nós não podemos ter locais conservados e não conservados. Temos que ter a distribuição da floresta ao longo de toda a bacia hidrográfica.
O grau de destruição da recente enchente em Santa Catarina foi mais intenso nas áreas menos florestadas?
Nos locais em que há floresta, nós temos uma melhor dinâmica da água. O Alto Vale do Itajaí está com os solos muito mais descobertos, assim a precipitação desceu drasticamente em direção às cidades. A barragem de Ibirama encheu 80% de sua capacidade e a de Ituporanga passou 4 metros acima de seu vertedouro. E por que chegou a esse volume de água tão grande? Por causa da cobertura insuficiente para reter. Grande parte desse volume de água iria descer, mas provavelmente com menor rapidez. Talvez tivéssemos a enchente em Rio do Sul, mas não em um nível tão elevado. Choveu e a água desceu com muita rapidez porque não teve a floresta para diminuir a velocidade e o solo poroso para infiltrá-la e, com isso, ela foi em direção aos rios. Os desastres que vemos em Santa Catarina poderiam ser potencializados em número e escala de gravidade caso a cobertura das encostas estivessem sem vegetação. Em 83 e 84, quando tivemos duas das maiores enchentes, nós estávamos no auge da degradação do Vale do Itajaí e embora a intensidade de chuvas tenha sido quase a mesma dessa que registramos recentemente, a água alcançou quase dois metros a mais nesses dois episódios. Então não dá para negar a influência da floresta.
O que levou ao aumento da Mata Atlântica em Santa Catarina desde a década de 80?
A Lei da Mata Atlântica. Tenho absoluta certeza em relação a isso. A lei é de 2006, mas o decreto veio antes em 1992. A partir dele foi suspensa qualquer exploração ou supressão de floresta. A polícia ambiental atuou e não permitiu que cortassem. Fecharam serrarias, quem trabalhava com padarias passou a usar madeira de pinus e eucalipto, as fumajeiras tiveram que implantar plantios de árvores para fazer a secagem. A vegetação cresceu em todas aquelas áreas que estavam em início do processo de sucessão, as chamadas capoeiras. Em 20 anos, isso fez diferença. Por mais que as pessoas sejam contra a legislação mais restritiva, provavelmente a enchente em 2008 teria sido pior se não tivéssemos essa vegetação recuperada nestas duas décadas.
Como vê as mudanças no Código Florestal em discussão no Senado num momento em que o Estado de Santa Catarina teve 100 municípios afetados por este grave desastre ambiental?
Vejo como uma tragédia. Manter a propriedade sem uso da floresta é difícil. Teremos que liberar alguns usos, mas com a permissão para diminuir a faixa ao longo dos cursos d’água e a redução ou uso irrestrito da Reserva Legal, nós vamos ter um empobrecimento da estrutura da floresta, uma redução de florestas, e uma fragilização ainda maior frente aos desastres. Temos em Santa Catarina propriedades com quase 80% de cobertura vegetal e, até o momento, com a lei da Mata Atlântica, os proprietários não podem suprimi-la. Em pouco tempo, vamos diminuir e simplificar a estrutura da floresta e perder biodiversidade. Três resultados imediatos. Nós temos aqui tipicamente a pequena propriedade então aqui o uso vai ser muito grande.
Em sua opinião, quais as conseqüências no curto e médio prazo, caso o atual texto do Código passe sem alterações?
Se o Código for aprovado da forma como ele está, nós teremos uma redução drástica da Mata Atlântica no estado de Santa Catarina. Vamos reduzir floresta. Não tenho a menor dúvida. Com isso, vamos aumentar a fragilização frente a desastres como o ocorrido neste mês no Vale do Itajaí. Ela acontecerá de duas formas: nos períodos chuvosos, vamos estar mais vulneráveis às inundações, escorregamentos e enxurradas. Por outro lado, nos períodos de seca, não haverá suficiente oferta d’água. O Rio Itajaí, em época de seca, cola no fundo. A mudança no Código Florestal vai fazer ainda com que as pessoas pressionem pela mudança na lei sempre que estiverem com dificuldades em cumprir a legislação, e não revejam seus procedimentos ou tenham uma atitude mais consciente.
A discussão do Código Estadual de Meio Ambiente Catarinense gerou prejuízos à conservação da floresta em Santa Catarina?
O que atrasou esse avanço da exploração foi a entrada da Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo Ministério Público Estadual. Como isso aconteceu, não abriu a debandada geral porque o proprietário está com medo de autorizarem e ele ser punido depois. Mas os agricultores já começam a pensar em não fazer o registro da Reserva Legal, já pensam que não precisam manter a sua roça distante dos rios, as cidades não querem cumprir o Código Florestal nas áreas novas e nem naquelas consolidadas. Estão todos em espera.
A senhora fez parte recentemente da equipe científica do primeiro Inventário Florístico-Florestal de Santa Catarina. Quais as condições da Mata Atlântica catarinense?
Constatamos que temos mais floresta do que pensávamos e isso é um fato positivo, mas a segunda constatação é de que ela não está tão rica, alta, grossa quanto deveria estar. Temos cerca de 32% do estado coberto pela Mata Atlântica, concentrado especialmente na faixa litorânea. Ela está com menos espécies, com sua estrutura mais baixa, porque é jovem, e com as árvores mais finas. Isso representa uma floresta que está em fase de recuperação. Esperava-se na floresta ombrófila densa subtropical cerca de 120 espécies de árvores por hectare. O máximo que encontramos foi 80 espécies por hectare, mas a média foi de 40 a 60 espécies. No Oeste catarinense, ainda menos. As unidades amostrais com boa floresta original são menos de 20 dos 540 pontos pesquisados no estado, e todas elas estão concentradas em unidades de conservação ou em locais de muito difícil acesso. Todas as demais estão em áreas já perturbadas com o corte de madeira e com a pressão de uso no entorno muito grande. O reflorestamento e a pastagem estão por perto.
A população tem sofrido as conseqüências desse empobrecimento da floresta?
O Oeste catarinense tem sido afetado com secas mais freqüentes. Qual o percentual? Embora seja o local do estado em que mais chove, a precipitação se tornou concentrada, evapora e escoa rápido porque o sistema retém pouco. Nos anos de seca entre 2002 e 2006, todos os municípios do Oeste decretaram estado de calamidade pública.
Como avalia o risco de redução da floresta catarinense diante da perspectiva de agravamento nas mudanças climáticas?
Para usar uma analogia, nós estamos indo em direção ao inverno e queimando os cobertores. Temos um cenário que nos sinaliza dificuldades por excesso ou falta d’água e nós estamos eliminando aquilo que poderia nos proteger desses desastres. Nós podemos ver de dois modos: um diretamente relacionado à redução da cobertura vegetal e outra relacionada ao sobreuso ou uso não conservacionista das áreas sob ocupação humana. Esses dois fatores aliados fragilizam as populações frente aos desastres.
A partir do inventário é possível dizer qual o potencial de recuperação da Mata Atlântica?
Nós nunca estivemos num momento tão favorável para responder a essa pergunta. Descobrimos que o poder de recuperação é muito maior do que pensávamos. Esta foi a grande descoberta do inventário. Encontramos áreas em que a vegetação cresceu e está em estado avançado de recuperação. Entre 20 a 30 anos temos uma floresta jovem. Em torno de 40 a 50 espécies crescem rápido como as quaresmeiras, camboatás, guaramirins. Agora, para termos aquelas espécies que são consideradas da floresta original, as lauráceas e mirtáceas, consideradas as rainhas da floresta é outra fase. Vamos precisar entorno de 100 anos para que elas estejam em bom número e em seu estado reprodutivo. Podemos encontrar árvores com até mil bromélias numa floresta primária, enquanto na floresta jovem, encontramos 2 ou 3. Se não estão lá as bromélias, samambaias e orquídeas, também a umidade interna dessa floresta e o solo não estão de acordo com as condições que estas árvores mais exigentes precisam. É necessário um tempo para as espécies se instalem e dispersores.
Quais foram os principais fatores de degradação identificados nas florestas catarinenses durante o inventário?
A exploração seletiva de madeira está presente em quase 90% dos casos. Existe a exploração madereira, do palmito e da erva-mate. Que será problema se não for bem conduzida, mas ela é importante também como fonte de renda para as propriedades. Ela é possível de fazer, mas tem que retirar um volume que a floresta tenha capacidade de repor. O segundo fator é o corte do sub-bosque, ou seja, as pessoas limpam embaixo da floresta, o que é extremamente problemático. É como chegar numa população e matar as criancinhas. No planalto, é feito especialmente para que o gado entre mais facilmente para obter proteção e alimentação no inverno. Noutros casos, como uma forma de simplificar a floresta a tal ponto que ela não esteja mais lá. Outro fator é a presença de estradas, que parecem inócuas, mas favorecem a entrada de fogo, facilitam a caça e exploração dos recursos. Muitas vezes, encontramos a junção de todos esses fatores na mesma floresta.
Que medidas para você são essenciais para acelerar a recuperação da floresta e barrar a exploração ilegal?
Políticas de incentivo ao proprietário são emergenciais. Sejam elas medidas financeiras ou indiretas. Se quisermos manter o que ainda temos de floresta temos que ter capacidade de subsidiar esse agricultor. O manejo também deve ser permitido com um volume de produtos que ele possa extrair, inclusive, para araucária, palmito e espécies ameaçadas de extinção. Esta é uma situação muito problemática. As pessoas estão cortando os indivíduos novos. Estamos encontrando adultos, mas não jovens araucárias. Muitos deles nos dizem: eu corto para eliminar antes que ela cresça. Mesmo estando na lista de espécies ameaçadas de extinção e protegidas do corte, não há como fiscalizar. Você anda nas áreas de araucárias e não tem filhotes, mesmo produzindo milhares de sementes todo inverno. Acham que é prejuízo ter araucária em sua propriedade porque não podem mexer e atrapalha o pasto.
Proteger a floresta passa pelo incentivo a outras práticas agrícolas e pecuária no estado?
Se o governo quer uma melhora, vai ter que investir não somente na produção agrícola, mas também na manutenção das florestas nas propriedades. O produtor que hoje se confronta com a realidade que o vizinho que utiliza totalmente a propriedade e produz em larga escala e ele que tem floresta não pode utilizar considera a mata como empecilho na propriedade e não como uma benesse. Então constatamos pelo inventário que ele tenta ao máximo reduzir pelas bordas e por dentro da floresta. E por quê? Porque ele não vê formas de obter dinheiro comparativo com o sistema agrícola convencional. Precisamos de políticas públicas que vão apoiar o proprietário de uma floresta e aquele que produz de forma mais sustentável. Pode ser diminuição de impostos, linhas de crédito, ou aquelas indiretas, apoio na manutenção de estradas, aquisição de insumos ou na comercialização para que, neste momento de transição, ele tenha condições para se manter.
Os mecanismos de pagamentos por serviços ambientais seriam outra forma de garantir a floresta em pé?
Sim, é preciso tornar lucrativo de alguma forma. O apoio ao proprietário é urgente. Poderíamos recompensar por proteção das nascentes para ter água de boa qualidade disponível. Nas propriedades com espécies ameaçadas de extinção ou importantes para manutenção da fauna, deveríamos fazer esse pagamento. Se alguém tiver floresta de muito boa qualidade, ele deveria ser remunerado. A segunda coisa seria facilitar os manejos de vegetação secundária e o estímulo à recuperação. Se não houver políticas de conservação e uso dos recursos florestais a tendência é de supressão, legal ou ilegal. Sempre haverá uma boa justificativa para cortar. Isso é bem claro. Todo avanço que tivemos nas décadas de 80 e 90, podemos ter um retrocesso rápido porque as pessoas ficam assustadas e pensam em cortar antes que mude a lei novamente.
Qual a viabilidade de exploração sustentável de espécies nativas da Mata Atlântica?
A araucária é uma espécie de alto valor econômico, fácil de plantar e colher. Produz a madeira e o pinhão, tem tudo para ser feito o manejo sustentável. Cresce rápido, tem bom potencial econômico e temos solo e clima favorável a ela. A lei não impede qualquer uso comercial da cultivada, apenas dos remanescentes. Alguns proprietários que fizeram plantio de araucária no passado e não registraram junto aos órgãos de meio ambiente, quando chegou a hora de cortar não puderam. Quando esse tipo de notícia se espalha, sem nenhum tipo de medida por parte do governo que prove o contrário, elas passam a ser o inimigo da propriedade. Está acontecendo o mesmo com o sassafrás, a imbuia e agora com o palmiteiro. Porque se ele tem na propriedade como nativa não pode cortar, se deixa as pessoas roubam, então é melhor não ter. Isso é gravíssimo. Nós fizemos levantamento em áreas com boa qualidade florestal e encontramos mil palmiteiros com 5 cm de diâmetro por hectare, enquanto no inventário foram apenas 20 exemplares da espécie na faixa litorânea por hectare. A fauna está passando fome.
Qual seria a solução?
Facilitar o manejo do palmito nas propriedades com o registro simples dos plantios. Nada de projeto custosos. O produtor comprova que plantou e fez manejo. Vai à prefeitura e faz o registro. Com o tempo poderia coletar um percentual por vez e vai tendo uma dinâmica que dá certo.
O país está deixando de priorizar o manejo das espécies nativas para priorizar as exóticas?
Claro. Não temos seleção das melhores sementes, biotecnologia aplicada à produção desses produtos florestais ou esforços de financiamento real ao produtor que faz diferente. Temos que ter ação fiscalizatória, mas também apoio. E fazer com que seja rentável ter araucária, palmiteiro e outras espécies. Temos muito pouco recurso investido para tecnologia de produção de espécies nativas. Dos quase 40 anos da Embrapa, 30 anos foi dedicada a pinus e eucalipto para saber como ambientar essas espécies. E foi um grande sucesso. Agora está na hora de trabalharmos na tecnologia do palmiteiro. Ele cresce em qualquer terreno aberto e dá para fazer manejo na floresta e cultivo. Tem grande valor comercial e cultural e é fundamental para fauna. Agora é que estão havendo os primeiros experimentos para extração da polpa para produção do açaí da juçara para o mercado. Essa é uma vertente nova que não precisa cortar a palmeira. No oeste, temos o cedro, o angico, a grápia e a canafístula com potencial madeireiro. São espécies de alto interesse econômico e poderiam entrar como opções de manejo.