STF acena a favor dos direitos indígenas, mas próximos capítulos serão fundamentais

setembro, 22 2023

Para o WWF-Brasil, é necessário sim comemorar a decisão do STF, mas também seguirmos atentos para que ela não seja uma vitória de pirro, uma conquista pífia alcançada a alto preço
Por WWF-Brasil

Na tarde desta quinta (21) o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, em caráter definitivo, a tese impulsionada por representantes do agronegócio que visava restringir a demarcação ou ampliação de territórios indígenas. Conhecida como “Marco Temporal”, a tese defende que só teriam direito à terra os povos que as ocupavam ou as disputavam em 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da atual Constituição Federal. Com nove votos contrários e dois a favor, os ministros do STF confirmaram sua jurisprudência e decidiram que os povos indígenas que tenham sido expulsos ou removidos de sua terra no passado não perdem o direito de recuperá-las.

Ao resistir à pressão que vinha sofrendo de setores política e economicamente influentes, o STF reafirmou seu papel de guardião da Constituição e dos direitos de minorias - algo essencial à natureza do Estado Democrático de Direito e tão necessário como a punição a tentativas de golpe de Estado.


Porém, desdobramentos em outro ponto da Praça dos Três Poderes podem colocar em risco os direitos que o STF está buscando salvaguardar. Caso seja aprovado no Senado, o projeto equivocadamente conhecido pelo mesmo nome - e que está na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal da próxima semana - abre uma série de possibilidades de desvirtuamento do propósito original de demarcação de territórios indígenas.
 

Projeto no Senado


No Projeto de Lei (PL) 2.903/2023, a questão do Marco Temporal é apenas um detalhe que pode ser excluído sem prejuízo ao restante do texto, que, de maneira preocupante, legaliza uma série de ameaças aos direitos indígenas e que, na prática, inviabiliza demarcações de terras indígenas. A variedade e a gravidade das situações de excepcionalidade previstas o tornam a mais grave ameaça aos indígenas atualmente. Entre outras coisas, o texto prevê a possibilidade de retomada desses territórios, com remoção forçada de seus ocupantes, caso ocorra a “alteração dos traços culturais da comunidade” – possibilidade prevista pelo Artigo 16, § 4o, I e II, do PL nº 2.903/2023. Esse dispositivo, além de racista, abriria a porta para uma reversão nas demarcações já existentes.
 
O plantio de organismos geneticamente modificados, por exemplo, poderia contaminar sementes e espécies crioulas e nativas, comprometendo a biodiversidade, o patrimônio genético dos povos indígenas, a segurança alimentar e o bem-estar dos indígenas.  Isso poderia ser considerado uma alteração dos traços culturais da comunidade. Mas paradoxalmente, essa hipótese é prevista no Artigo 30 do PL, que altera o Artigo 1º da Lei 11.460/2007 e autoriza o cultivo de organismos geneticamente modificados em terras indígenas.
 
A entrada de organismos geneticamente modificados e a alteração de traços culturais é favorecida também por outra brecha aberta pelo PL: a possibilidade de que fazendeiros possam praticar agricultura ou pecuária dentro de terras indígenas, por meio de contratos de “parceria agrícola”. Na prática, o projeto visa legalizar casos de arrendamento que são proibidos pela Constituição Federal. Isso abriria uma brecha legal que poderia levar a um aumento exponencial no desmatamento em territórios indígenas, que hoje são as áreas mais bem preservadas do país, mais ainda do que Unidades de Conservação.
 
O projeto também exclui a consulta prévia às comunidades indígenas não só para instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, como também para expansão de malha viária (estradas, portos, hidrovias) e a exploração de alternativas energéticas (hidrelétricas, linhas de transmissão).  De acordo com o projeto, bastaria que o governo declarasse uma obra como de “interesse nacional” para que o direito à consulta prévia, garantido inclusive por convenções internacionais do qual o Brasil é signatário, fosse afastado.

Outro ponto extremamente preocupante do texto em avaliação pelos Senadores da República é o artigo 28, nos parágrafos 1º e 2º, que estabelece uma política de contatos forçados com os indígenas isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”, desvirtuando a política de não-contato e gerando ameaças aos povos indígenas em isolamento.
 
O PL 2.903/23 está na pauta de votação da CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) do Senado da próxima semana. Se for aprovado, a decisão do STF poderá ter efeitos muito limitados não só na proteção dos direitos indígenas, mas sobretudo na garantia do direito de todos os brasileiros a um clima estável e seguro. Isso porque o conjunto de dispositivos que ele traz em seu bojo poderá fazer aumentar de forma exponencial o desmatamento dentro de territórios indígenas, os quais protegem hoje ¼ (um quarto) da Amazônia e uma parcela importante do Cerrado, estocando quantidades imensas de carbono e abrigando uma imensa variedade de espécies da fauna e flora. Sem territórios indígenas bem preservados será impossível evitar o ponto de não retorno da Floresta Amazônica, e isso terá consequências severas para toda sociedade brasileira nas próximas décadas.

Próximos passos no STF


Os ministros do STF ainda se debruçarão nas próximas semanas sobre pontos que ficaram pendentes no julgamento, como a necessidade de indenização aos detentores de títulos de terra. Embora tenham sido ilegalmente emitidos sobre território indígena no passado, eles têm alguma aparência de legitimidade, por terem como origem os governos estaduais ou, em alguns casos, até mesmo o governo federal. Documentos fraudados por grileiros podem encontrar neste ponto uma brecha para lucrar com a apropriação indevida de terras. A questão dos ocupantes não-indígenas foi levantada pelo ministro Alexandre de Moraes e incluída no voto de vários de seus pares. Espera-se que os ministros consigam chegar a uma solução que contribua para a pacificação do campo, reduzindo os conflitos pela terra, permitindo a conclusão dos processos demarcatórios e impedindo futuras invasões.
 
Além disso, há outro ponto de atenção que ainda pode ser discutido pela Corte Constitucional. Em seu voto, o ministro Dias Toffoli propôs que o tribunal desse um ano para que o Congresso Nacional aprovasse uma lei regulamentando o §3o do art. 231 da Constituição Federal, o qual permite a exploração mineral e hidrelétrica em territórios indígenas. Essa questão não faz parte do caso concreto analisado pelo Supremo Tribunal Federal. Se porventura vier a constar da decisão final, poderá alimentar a aprovação do PL 2.903/23.

Portanto, é necessário sim comemorar a decisão do STF, mas também seguirmos atentos para que ela não seja uma vitória de pirro, uma conquista pífia alcançada a alto preço.

Ativista indígena protesta contra Marco Temporal em Brasília
© Jacqueline Lisboa/WWF-Brasil
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