ARTIGO: A ilusão dos números

março, 04 2009

Modelagens e números servem a diversos propósitos em nossa sociedade. No debate sobre o setor elétrico é frequente o uso inadequado de variáveis como argumentos para justificar diversas políticas de planejamento e expansão do setor elétrico brasileiro sem considerar os componentes socioambientais de cada fonte geradora de energia.
Por André Tavares e Karen Suassuna*

Modelagens e números servem a diversos propósitos em nossa sociedade. Seu uso correto permite preparar-nos para o futuro, revela conclusões surpreendentes sobre o mundo ao nosso redor e é essencial para o progresso técnico da sociedade.

No entanto, quando mal usado, um número pode ser corrompido para expressar idéias que a ele não compete por ser completamente livre de qualquer ideologia. É como diz aquele velho ditado: “torture os números e eles te dirão o que você quer”. Um bom exemplo disso é o famoso Produto Interno Bruto (PIB) per capita. O PIB é a soma de todas as riquezas produzidas no país e não inclui considerações de distribuição de renda ou demográfica ou mesmo outros fatores de bem-estar social ou ambiental. Em um país onde a distribuição de renda é o seu calcanhar de Aquiles, usar PIB per capita para medir riqueza é um instrumento que acaba não refletindo a realidade.

No debate sobre o setor elétrico, ocorre semelhante distorção, já que é frequente o uso inadequado de duas variáveis como argumentos para justificar diversas políticas de planejamento e expansão do setor elétrico brasileiro. A primeira é o consumo de kWh por habitante como única variável capaz de medir o bem-estar advindo do consumo de energia elétrica. Esta medida não considera eventuais desperdícios, que acabam aumentando os custos para os consumidores e ainda geram impactos socioambientais desnecessários. Isso sem nem falar nas questões distribuição, onde o desperdício também é grande.

O próprio Plano Nacional de Mudanças Climáticas destaca que o potencial atual de conservação no país está na faixa de 32 TWh, ou seja, quase 8% do consumo per capita de energia elétrica no país. Otimizar o consumo não significa redução do bem-estar. Muito pelo contrário, pode contribuir enormemente para este fim ao reduzir custos. Nada ilustra melhor o potencial de redução de consumo de energia que a lâmpada fluorescente que consome até 9 vezes menos energia que lâmpadas convencionais, dura dez vezes mais e oferece o mesmo bem-estar.

Além disso, comparar este dado entre diferentes países do mundo mascara as diferentes realidades de consumo entre os países, realidade moldada por variáveis tão heterogêneas quanto clima – por viver nos trópicos, precisamos de mais eletricidade para refrigeração, por exemplo – ou arquitetura.

Energias alternativas
Outra deturpação ocorre com os custos mais elevados de formas alternativas de energia também conhecidas como energias renováveis não-convencionais. O dado bruto de custos por MWh compara diversas formas de geração de energia e mostra que energia eólica, por exemplo, pode ser mais cara que outras formas de energias convencionais como hidrelétricas convencionais. Entretanto, o preço final da eletricidade gerada está diretamente relacionado a diversas considerações políticas, financeiras e tributárias.

Ora, se fossem tomadas medidas adequadas como estabelecimento de uma política industrial efetiva, isenções fiscais ou regras de amortização diferenciadas para a energia eólica, o preço da energia poderia cair consideravelmente sem a necessidade de novos avanços tecnológicos. Além disso, o fato de o Brasil operar hoje com um sistema de rateio por todo o sistema elétrico do custo da transmissão de energia entre os centros geradores e os centros consumidores, faz com que os dados de custo por MWh mascarem o fato de que energias produzidas em lugares mais distantes, como por exemplo na Amazônia, são de fato mais caras do que aquelas produzidas em lugares mais próximos.

Complementariedade
A questão fundamental posta na mesa não é o embate entre hidrelétricas e termelétricas, mas sim a complementariedade entre as duas fontes.

No período do ano de menos chuvas ou durante picos de consumo de energia, são necessárias outras fontes para suprir as necessidades de consumo de eletricidade. Em outras palavras, a energia hídrica produzida pelo país não é suficiente para satisfazer a demanda o tempo todo. São necessárias outras fontes que a complementam.

A visão do WWF-Brasil
O WWF-Brasil defende o uso de biomassa e de energia eólica, não por ser um substituto à energia hídrica, mas sim por ser uma alternativa ambientalmente mais correta e de farta disponibilidade em comparação às fontes térmicas convencionais movidas a óleo combustível, carvão ou gás. Além disso, podem vir a ser igualmente competitivas, visto o leque de opções de apoio financeiro disponível ao estado.

Em setembro de 2006, o WWF-Brasil deu importante contribuição para o setor ao lançar o estudo Agenda Elétrica Sustentável 2020, documento realizado por pesquisadores da Universidade de Campinas, que resume as principais colocações da instituição sobre o tema mais amplo de planejamento do setor elétrico.

No ano de sua publicação, o estudo apontava uma possibilidade de baixar a demanda esperada de energia em 38% até 2020, bem como gerar 8 milhões de novos postos de trabalho e manter um patamar de 20% de energias renováveis não-convencionais na matriz elétrica brasileira.

Não cabe aqui ressaltar todas as vantagens do estudo. Basta dizer que o país possui um enorme potencial para produção de energias alternativas em curto, médio e longo prazo, e este ainda não está sendo plenamente utilizado. Medidas específicas para as diversas energias renováveis não-convencionais devem ser implementadas pelo governo com vista a transformá-las de alternativas a convencionais.

Entre essas medidas, estão leilões específicos para diferentes tipos de energia elétrica como de biomassa ou energia eólica, algo que já está sendo feito pelo governo. Mas, o esforço precisa ser ainda maior, sobretudo considerando as necessidades urgentes em reduzir as emissões de gases de efeito estufa da humanidade.

Em suma, em muito aumentaria o bem-estar dos brasileiros se esta guerra de números se transformasse no que realmente deveria ser o foco das discussões: um debate de funções.

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* André Tavares e Karen Suassuna são analistas em Mudanças Climáticas do WWF-Brasil
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