Redução, recategorização e extinção de unidades de conservação no Cerrado
setembro, 30 2020
Cadastro Ambiental Rural (CAR) não implementado surge no radar como fator extra contra Unidades de Conservação
Cadastro Ambiental Rural (CAR) não implementado surge no radar como fator extra contra Unidades de Conservação.Por Jaime Gesisky
Unidades de Conservação (UC) hoje existentes no Cerrado poderão sofrer algum tipo de redução, reclassificação ou mesmo extinção nos próximos anos. A ameaça paira principalmente sobre áreas protegidas federais localizadas no bioma, o que não quer dizer que UC estaduais estejam salvas. A pressão vem desde a criação de assentamentos rurais, demanda por terra, desmatamento para expansão das atividades agropecuárias, industrialização e mineração.
Outro fator que agora pesa contra as áreas protegidas do Cerrado é a falta de adesão dos Estados localizados no bioma em validar o Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento do Código Florestal criado para ajudar na regularização ambiental e fundiária. Implementado apenas parcialmente, o CAR pode gerar mais confusão, fazendo com que proprietários particulares tentem registrar como suas as terras já destinadas à conservação e uso sustentável da biodiversidade.
O CAR é autodeclaratório, mas sem validação em campo pode ser mais uma pressão sobre o bioma na lógica do “fato consumado” de quem quer ganhar com irregularidades ou usar de má fé na declaração das propriedades. Nesta brecha, as unidades de conservação podem ficar ainda mais vulneráveis. É o que revela um novo estudo do WWF-Brasil publicado hoje e que mapeia iniciativas que diminuem a proteção do Cerrado.
Os processos de redução, recategorização e extinção de unidades de conservação – conhecidos pela sigla em inglês PADDD (Protected Areas Downsizing, Downgrading and Degazetting) são cada vez mais frequentes ao redor do mundo. No Brasil, iniciativas assim têm sido detectadas – e combatidas – de Norte a Sul. Com o novo estudo, os pesquisadores agora lançam luzes sobre o que está acontecendo no Centro-Oeste. E o retrato segue o padrão nacional.
As propostas de PADDD são cada vez mais comuns na pauta do Congresso Nacional e das assembleias estaduais. A onda de fragilização das Unidade de Conservação no país inclui ainda outras propostas que afetam o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o Snuc. Esse movimento ganhou força no Brasil na última década. No bioma Cerrado, o primeiro caso de PADDD foi em 1971, no Parque Nacional do Araguaia, no Tocantins. A diferença agora é a frequência cada vez maior que esses episódios passaram a ter.
Criada pelo WWF-Brasil e parceiros, a plataforma PADDDTacker-Brasil ajuda a monitorar esses casos. Segundo essa ferramenta, 26 registros de PADDD foram observados no Cerrado somente nos últimos anos. Treze deles foram efetivados. A maior parte são UC federais, com predomínio de parques – categorias de proteção integral devido à importância que têm para a biodiversidade, a água e o clima. Conforme o estudo, as motivações que levaram ao desmantelamento das UCs foram assentamentos rurais (7 casos); demanda por terra (7); degradação (4); industrialização (3); mineração (2); outros (2); e sem informação (1).
Chama a atenção a recorrência de processos de PADDD em algumas UC, como os parques nacionais do Araguaia, Canastra e Veadeiros. Os eventos mais frequentes foram: diminuição (16 casos); mudança de categoria (8) e extinção (2). A soma das áreas afetadas pelas propostas de PADDD alcança 34, 5 mil km2.
Faltam critérios
As alterações em limites e categorias de UC podem até ocorrer, explica a gerente do Programa de Ciências do WWF-Brasil, Mariana Napolitano. Mas em casos excepcionais em que possa haver ganhos reais para o meio ambiente, que facilitem o acesso ao uso sustentável dos recursos naturais e contribuam para o bem estar das populações locais, pondera a especialista. Segundo ela, em tais situações, a revisão de tamanho ou categoria das UC deveria seguir critérios técnicos que orientassem as leis para as mudanças necessárias.
“É o que estamos tentando estabelecer agora, já que temos um panorama mais completo. Há um padrão nos casos de PADDD que nos permite avançarmos para um protocolo que possa orientar as discussões.
O que tem ocorrido, porém, é que as propostas de PADDD no Brasil são desprovidas de argumentos técnicos e científicos, movidas por interesses setoriais e, quase sempre, inconstitucionais. A maioria das propostas apresentadas submete as áreas protegidas a interesses privados, quando a Constituição estabelece que meio ambiente é um direito de todos.
Unidades de Conservação são essenciais para manter a biodiversidade, o regime hídrico, a segurança climática e os modos de vida de populações tradicionais, como indígenas, quilombolas e extrativistas.
Para resistir à ofensiva de fragilizar as UC e o Snuc, é necessário conhecer as motivações nas propostas de PADDD, mapear as tendências de mudanças no uso do solo incentivadas por políticas públicas – ou pela falta delas – e manter ações articuladas de monitoramento e advocacy junto aos governos e parlamentos, orienta o estudo do WWF-Brasil.
Essencial para a segurança hídrica no Brasil, o Cerrado já teve mais da metade da sua vegetação nativa dizimada nas últimas décadas. Espécies únicas de animais e plantas foram perdidos para sempre sem que a Ciência sequer os tivesse identificados. Os remanescentes de vegetação nativa tombam de modo veloz em áreas de fronteira agrícola do Cerrado, como o Matopiba (região que pega um pedaço do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) em que a savana mais rica em biodiversidade do planeta é forçada a ceder lugar à soja.