Capim dourado se transforma em ouro nas mãos de artesãs do Jalapão

janeiro, 04 2024

Ao fortalecer essa importante cadeia produtiva da sociobiodiversidade, projeto ajuda a manter a cultura de comunidades quilombolas e a conservar o Cerrado
Por Débora Rubin, especial para o WWF-Brasil

No Jalapão, é o capim dourado (Syngonanthus nitens) que anuncia a chegada da primavera. No dia 20 de setembro, quando começa oficialmente a colheita dessa haste brilhante com uma pequena flor branca na ponta e que pertence à família das sempre-vivas, centenas de mãos se preparam para trançar os “fios de ouro” e transformá-los em bolsas, caixas, joias, mandalas e outros objetos que reluzem como o metal precioso, numa tradição centenária que garante renda às artesãs locais e ajuda a conservar o Cerrado. 

Em Mateiros e São Félix do Tocantins, que fazem parte do Jalapão, no estado do Tocantins, quase tudo gira em torno do capim dourado e do ecoturismo, uma vez que grandes unidades de conservação do Cerrado estão nesse território. Conforme números do IBGE, os dois estão entre os dez municípios brasileiros com maior proporção de pessoas quilombolas do país, como as artesãs do capim dourado Laudeci Ribeiro, Railane Ribeiro e Luzia Passos.

As três aprenderam a técnica ainda crianças e, hoje, lideram associações que lutam por mais visibilidade para o trabalho que fazem. Agora, além das peças utilitárias e biojoias já feitas há décadas por essas mulheres e suas ancestrais, elas também ficaram conhecidas por produzirem obras de arte feitas com o capim. Já que, no dia 7 de dezembro, a coleção Jalapoeira Apurada, série de esculturas criadas em parceria com o Instituto a Gente Transforma (IAGT), do designer Marcelo Rosenbaum, foi lançada em Palmas.

Com o apoio do WWF-Brasil e em parceria com a cooperativa Central do Cerrado, as três associações lideradas por Laudeci, Railane e Luzia passaram nos dois últimos anos por formações que envolveram diversas etapas. Em um primeiro momento, coletoras do capim dourado (muitas das quais são as próprias artesãs) receberam orientação e kits para o manejo correto do fogo – importante elemento nas culturas extrativistas e na própria conservação do Cerrado, mas que pode se alastrar e se tornar um incêndio de grandes proporções se não for feito da forma correta.

O IAGT iniciou em 2021 o processo de cocriação de um projeto e, pela primeira vez, as três associações se reuniram para fortalecer seu trabalho e o posicionamento de artesãs quilombolas, dando vida às peças da coleção de esculturas Jalapoeira Apurada. O trabalho do IAGT foi conduzido para levar o capim dourado para outros mercados, como o do design-arte, em que produtos exclusivos têm a possibilidade de construir uma narrativa que qualifica o saber fazer como um produto símbolo da cultura e da tradição. 

Posteriormente, o foco foi a parte comercial, desde a criação de novos produtos até o apoio na estruturação física das lojas de artesanato das associações. As artesãs também receberam treinamentos sobre precificação, este em parceria com a Universidade Federal do Tocantins (UFT), e sobre conquista de novos mercados.

Tradição local

Os produtos feitos com capim dourado se tornaram a grande estrela das lojas de artesanato de Mateiros e dos outros municípios do Jalapão a partir dos anos 2000. Passado um tempo, porém, as vendas dos itens acabaram ficando restritas a turistas que visitam o local e a alguns pontos espalhados pelo Brasil. Com o projeto apoiado pelo WWF-Brasil, o objetivo é que essa produção artesanal seja expandida dentro e fora do país. 

Além do capim dourado, existem outras cadeias da sociobiodiversidade importantes na região, como a do buriti (que também é usado nos produtos do capim dourado), baru, murici, jatobá e mangaba. Destes, são feitos doces, óleos, cachaça, farinha, entre outros produtos do extrativismo, como mel de caju e de abelha. “São cadeias que mantêm o Cerrado em pé e geram renda, mas que ainda não estão organizadas como a cadeia do capim”, explica Cassiana Moreira, assessora técnica do projeto pela Central do Cerrado.

E mesmo o capim, cuja cultura é símbolo da conservação do Cerrado naquela região, sofre ameaças constantes. Uma delas é a colheita inadequada, feita antes do dia 20 de setembro, que é ilegal. Muitos atravessadores colhem antes da data permitida para vender para as artesãs. Outro problema, de acordo com Cassiana, é o capim sair do Jalapão e do Tocantins enquanto matéria-prima: o que também é proibido. “Sem fiscalização, fica difícil fazer esse controle”, diz ela, curitibana que adotou Mateiros 21 anos atrás. Por fim, a falta de água e os incêndios frequentes também são fortes fontes de pressão.

“É Deus no céu e o capim da terra”

Laudeci Ribeiro de Souza Monteiro, de 45 anos, é presidente da Associação Comunitária dos Artesãos e Pequenos Produtores de Mateiros (ACAPPM), que existe desde 2001. Ela tinha oito anos quando fez sua primeira costura com o capim dourado. A mãe aprendeu com uma artesã da comunidade quilombola de Mumbuca, e logo ensinou as cinco filhas. “A gente já costurava nossas roupas, as das bonecas, então sabia a base”, recorda. “Naquela época, a gente chamava de ‘capim-ouro’. Foi só depois que participamos de uma feira em Palmas, nos anos 1990, que ganhou esse nome, dourado”, conta Laudeci.

O capim é a fonte de renda mais importante para o município de Mateiros. “O turismo chegou aqui por causa dele, começaram a vir buscar produto e viram como o lugar é lindo. Hoje, 80% dos habitantes trabalham com isso. Todas as mulheres sabem costurar. Podem não querer viver disso, mas sabem”, afirma Laudeci, que criou quatro filhas na costura do capim. Duas delas têm formação superior e vivem em Mato Grosso do Sul.
 
“Desde os meus 12 anos eu já costuro com capim dourado, aprendi com minha mãe e com minha avó, Dona Miúda, que foi a precursora desta arte no mundo”. Assim, Railane Ribeiro da Silva, de 28 anos, presidente da Associação de Artesãos e Extrativistas do Povoado do Mumbuca, comunidade quilombola, começa a contar a sua história. “Hoje, a nossa comunidade é o que é por causa dele. É Deus no céu e o capim na terra. É o que nos traz condição de comer, de beber, de viver”.

Completa o trio Luzia Passos Ribeiro, de 35 anos, presidente da Associação Quilombo do Prata. Em sua comunidade, mais distante de Mateiros e próxima a São Félix do Tocantins, 90 famílias vivem da agricultura familiar e do extrativismo. “Poucos aqui têm salário, a pesca paga muito pouco, então o capim representa um trabalho diferenciado em termos de renda”, conta Luzia. Outra fonte de renda do Prata é o ecoturismo de base comunitária, no qual os visitantes se hospedam nas casas dos moradores.

 Ainda sem a titularidade oficial emitida pelo governo, o Quilombo do Prata hoje sofre pressão do agronegócio, que avança pela região principalmente com a monocultura da soja. “Também por isso precisamos manter essa cultura viva, para preservar a nossa região, a nossa casa. Já imaginou o Jalapão sem o capim dourado? Não existe”, desabafa Luzia.

O bioma mais ameaçado do Brasil

O Cerrado já perdeu cerca de 50% da sua cobertura original. Detentor de 30% de toda a biodiversidade brasileira e berço das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul, ele é, hoje, o bioma mais ameaçado do Brasil. Conter a pressão do agronegócio que avança principalmente pelo Matopiba (acrônimo que denomina região que inclui Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) é um desafio enorme.

“Já está provado que povos e comunidades tradicionais são os grandes protetores da terra”, explica Ana Carolina Bauer, analista de Conservação e líder do projeto no WWF-Brasil. “Queremos chamar a atenção para essa região que está ameaçada, ironicamente, até mesmo pela conservação da Amazônia. Com a proteção da área amazônica, o agronegócio avança no vizinho Cerrado, que não tem a mesma visibilidade da floresta. Obviamente precisamos continuar lutando pela conservação da Amazônia, mas os governos e a sociedade devem também reforçar a luta pelo Cerrado”, alerta.

Em comparação ao bioma vizinho, o Cerrado tem áreas menores de reserva legal, menos legislação focada na preservação, muito mais terras privadas, além de populações locais e originárias menos fortalecidas que os indígenas e outras comunidades tradicionais da Amazônia. Empoderar artesãs que usam como matéria-prima uma planta e que não causam danos ao planeta é um ótimo negócio para elas e para o meio ambiente.

Jalapoeira Apurada

Alçar o trabalho das artesãs de Mateiros e São Félix do Tocantins à categoria de arte é uma forma de empoderá-las. A Jalapoeira Apurada – nome que remete ao local em que as peças nasceram, ao olhar atento e às mãos que tecem a partir de um saber ancestral – traz 38 esculturas que foram expostas como peças de arte, mas que estarão à venda. Depois de Palmas, as esculturas devem viajar até São Paulo em 2024 e, em seguida, a ideia é levá-las para exposições mundo afora.

Além do apoio da Central do Cerrado para a venda das peças, um perfil no Instagram foi criado para ajudar na divulgação. “Nosso objetivo é que elas ganhem dinheiro com esse trabalho, para que possam continuar vivendo nos territórios de origem”, salienta Ana Carolina. Além da coleção de arte, o projeto do WWF-Brasil também rendeu uma nova coleção de peças utilitárias, com valores mais baixos que as esculturas. A ideia, com ambas as coleções, é chegar a públicos novos, com as mais diferentes faixas de renda.

“Esse não é um projeto que veio pronto, nós construímos juntos. E tem que ser de todo mundo, tem que ser o melhor para as nossas artesãs”, comemora Laudeci, da ACAPPM. “Antes, quantos projetos não chegaram aqui com tudo pronto, sem ouvir a gente? Não à toa, não iam para a frente.”

Luzia, do Prata, lembra que o começo do processo com Rosenbaum não foi fácil. “Até entender o que ele queria, foi difícil. Ele não entendia o nosso linguajar e a gente não entendia o dele. Começamos a nos entender no segundo ou terceiro encontro”, recorda. “Mas valeu a pena, o resultado é incrível. As esculturas estão uma mais encantadora do que a outra.”

“É um projeto maravilhoso, muito desafiador no primeiro momento porque ficamos com medo de não conseguir fazer”, completa Laudeci. “Os modelos que ele trazia nunca tinham sido feitos de capim dourado, então a gente ficou com medo de arriscar”. Uma vez “arriscado” elas se deram conta de que eram capazes de fazer. “Esse projeto proporcionou ainda muita união entre as três associações, muita força, muita garra de nós todas”, acrescenta.

Maria Aparecida Ribeiro de Sousa, presidente da Central do Cerrado, também artesã do povoado do Prata, celebra a conquista. A Central, que acompanha as três associações há 18 anos, sabe da importância desta coleção. “O Capim Dourado não é novidade, mas agora ele chega com um novo olhar e traz novas perspectivas”, diz. “Nossa expectativa é que amplie os horizontes das associações, que aumente o mercado. É isso que ajuda a manter uma cultura em pé. Afinal, as principais guardiãs do Cerrado são essas mulheres”.
 


 
Com o apoio do WWF-Brasil e em parceria com a cooperativa Central do Cerrado, as três associações lideradas por Laudeci, Railane e Luzia passaram nos dois últimos anos por formações que envolveram diversas etapas
© Loiro Cunha / IAGT
O capim dourado (Syngonanthus nitens) marca a chegada da primavera no Jalapão
© Loiro Cunha / IAGT
O capim é símbolo da conservação do Cerrado e sofre ameaças constantes
© Loiro Cunha / IAGT
Centenas de mãos transformam o capim dourado em bolsas, caixas, joias e mandalas, gerando renda para as artesãs locais e contribuindo para a conservação do Cerrado
© Loiro Cunha / IAGT
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