O legado de Chico Mendes resiste apesar da política de desmonte, diz filha do ativista
dezembro, 22 2020
Líder seringueiro é a maior referência mundial do movimento ambientalista e de defesa da Floresta Amazônica
Líder seringueiro é a maior referência mundial do movimento ambientalista e de defesa da Floresta AmazônicaWWF-Brasil
Há 32 anos, uma semana depois de completar 44 anos de idade, Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, foi assassinado com um tiro de espingarda, em 22 de dezembro de 1988, quando saía para o banho no quintal de sua casa, em Xapuri (AC). O cartucho disparado por Darcy Alves Pereira a mando de seu pai, o fazendeiro Darli Alves da Silva, ecoou no mundo e fez de Chico Mendes a maior referência mundial do movimento ambientalista e de defesa da Floresta Amazônica, atraindo à pequena cidade de Xapuri centenas de pesquisadores ávidos por entender qual é a importância e a herança deixada por aquele líder seringueiro.
Sobre a herança de Chico, sua filha mais velha, Ângela Mendes, diz que a principal e mais notável foi a criação das reservas extrativistas e demais unidades de conservação. “Este é o legado visível, palpável, mas também temos o Projeto Seringueiro –de alfabetização de moradores em comunidades isoladas nas matas- e a Aliança dos Povos da Floresta, que foi uma ideia de Chico, de reunir numa mesma causa populações distintas como seringueiros, índios e ribeirinhos”, analisa Ângela, que é presidente do Comitê Chico Mendes, organização encarregada de manter viva a história de vida e resistência em defesa da Amazônia.
Mas, para entender a importância deste legado, é preciso conhecer um pouco da história da colonização da Amazônia e da infância de Chico. Nascido no Seringal Porto Rico, em Xapuri, em 15 de dezembro de 1944, Francisco Alves Mendes Filho foi alfabetizado aos 16 anos e, mais tarde, iniciou uma luta solitária para a conscientização dos seringueiros quanto aos seus direitos pela posse das terras em que viviam. Chico Mendes também conscientizou os demais seringueiros –na grande maioria analfabetos– sobre a importância de reivindicar seus direitos, lutando contra a exploração dos patrões seringalistas.
Algumas famílias estavam nas matas desde os fins do Século 19, início da grande migração dos seringueiros do Nordeste para a Amazônia no chamado primeiro ciclo da borracha. Outras vieram para o Acre na década de 1940, no auge da Segunda Guerra Mundial, para extrair borracha exclusivamente para abastecer a estrutura dos exércitos aliados contra os nazistas.
Nos anos 1970, já com a economia da borracha em decadência e incentivados pelo governo federal, milhares de fazendeiros do Sul e do Sudeste do Brasil vinham para o Acre e adquiriam os seringais de porteiras fechadas, sem observar que as terras estavam ocupadas pelos seringueiros. Milhares de famílias acabaram sendo expulsas e tiveram suas casas incendiadas, indo inflar a população das periferias das cidades acrianas. Os que permaneceram foram condenados à miséria e à fome depois que as florestas eram derrubadas, levando as seringueiras e as castanheiras, seus principais meios de sobrevivência.
Neste contexto surgiu a campanha de Chico Mendes contra o desmatamento, primeiro através do Sindicato Rural de Brasileia e depois fundando o próprio sindicato em Xapuri, onde também se filiou ao MDB (Movimento Democrático Brasileiro), único partido de oposição autorizado a funcionar no Brasil durante a ditadura militar (1964-1985). Em 1977, Chico foi eleito vereador de Xapuri pelo MDB.
Em 1985, em sua primeira grande ação de visibilidade, Chico organizou o I Encontro Nacional dos Seringueiros na capital federal, o que atraiu centenas de representantes na Universidade de Brasília. O evento viabilizou a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros, reunindo lideranças de todos os estados produtores de borracha natural da Amazônia.
Mais adiante Chico cria a Aliança dos Povos da Floresta, mencionada por Ângela como um de seus mais importantes legados, reunindo seringueiros, indígenas e ribeirinhos; ou seja, as populações tradicionais da Amazônia. Uma união tão importante que foi reativada há um ano durante as comemorações da Semana Chico Mendes para fazer frente ao governo Bolsonaro e seus planos de desmantelamento da política ambiental brasileira.
Sua luta tornou Chico reconhecido internacionalmente. Em 1987 ele foi convidado a participar de uma conferência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) nos Estados Unidos para falar sobre os impactos ambientais e sociais que a pavimentação da BR 364 -entre Porto Velho e Rio Branco– poderia ocasionar.
Em sua própria terra natal, foi chamado de traidor por deputados da Assembleia Legislativa do Acre e convocado para dar esclarecimentos, o que fez em 19 de novembro de 1987. Chico Mendes era acusado de lutar contra o desenvolvimento do estado por se sua visão crítica sobre a rodovia, o que poderia impedir o envio dos recursos pelo instituição financeira internacional.
Por essa mesma época Chico já andava às voltas em conflito com os grandes ruralistas do Acre. Este tipo de situação já tinha feito, em anos anteriores, ao menos duas vítimas fatais: Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia e Nilo Sérgio, o Nilão, capataz de fazenda acusado de ser o mandante do crime, ambos mortos a tiros em 1980.
Duas semanas antes de ser assassinado, Chico Mendes deu entrevista ao Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, revelando que estava com os dias contados a julgar pela escalada de violência perpetrada pelos fazendeiros. “Na noite de 27 de maio deste ano eles mandaram atacar o nosso acampamento de trabalhadores, em Xapuri, onde dois seringueiros foram baleados: Raimundo Pereira e Manuel Custódio. Foram brutalmente baleados. Logo em seguida, no dia 18 de junho, Ivair Higino foi morto numa emboscada com espingarda calibre 12, dois tiros, e mais oito de revólver. Foi assassinado por grupos a serviço desses dois fazendeiros. Logo em seguida, em agosto, tudo neste ano apenas, um outro trabalhador, José Ribeiro, em Xapuri, foi também assassinado por pistoleiros”, contou Chico ao JB.
Os novos “empates”
Uma das palavras de ordem do movimento ambientalista brasileiro desde o assassinato de Chico Mendes é “Chico Vive!”. Este é o seu principal legado, conforme Ângela Mendes. Ela cita como exemplo concreto desta influência pós-morte a reativação da Aliança dos Povos da Floresta durante a Semana Chico Mendes do ano passado para combater a política destrutiva do governo de Jair Bolsonaro.
“Considero legado dele todas as lutas que ele liderou e que foram vitoriosas, como as reservas extrativistas que resistem mesmo com o governo que aí está e ameaçadas por dezenas de projetos de leis que buscam a extinção de unidades de conservação”, comenta Ângela, lembrando que desde a criação da Reserva Chico Mendes, foram estabelecidas outras 90 reservas extrativistas federais ou estaduais consolidando um novo paradigma de reforma agrária para o Brasil.
Para quem não sabe o que é uma reserva extrativista, Ângela lembra que são áreas de floresta protegidas por lei, onde a única atividade econômica permitida é a coleta de frutos da mata, como borracha, óleos, sementes e outros derivados sem a derrubada das árvores. Entre as classificações das unidades de conservação ela está na categoria de uso sustentável pelas famílias que estão no seu interior.
“Nesta onda devastadora de desmonte e retrocesso promovida pelo atual governo o que seriam destas áreas se não fossem protegidas por lei? Mesmo protegida, a Reserva Chico Mendes é a que mais sofre com o desmatamento e as queimadas”, observa. Em 2020, de acordo com o Inpe, a Resex Chico Mendes foi a que registrou mais focos de queimada entre todas as UCs federais da Amazônia; são 1.127 focos desde o começo do ano.
E essas ameaças estiveram, justamente, no centro dos debates realizados durante a Semana Chico Mendes 2020, que teve o apoio do WWF-Brasil. Este ano, por conta da pandemia do coronavírus, o evento foi realizado de forma virtual. Em épocas normais a semana –que vai do dia de nascimento de Chico (15 de dezembro) ao seu assassinato (22 de dezembro)– acontece entre as cidades de Rio Branco e Xapuri.
A versão virtual do evento teve a oportunidade de reunir vozes de lideranças da floresta, ativistas e estudiosos de várias partes do país. E como tema principal dos debates sempre esteve os retrocessos vividos pelo Brasil em suas políticas de proteção do meio ambiente e de todas as populações tradicionais. Um dos momentos mais esperados é a entrega do Prêmio Chico Mendes de Resistência. Entre os premiados deste ano estão o cacique Raoni Metuktire e a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) por suas lutas em defesa não só das populações tradicionais da floresta, como de todo o meio ambiente.
Um dos debates mais esperados foi o que colocou na mesma “mesa virtual” os principais influenciadores de Chico Mendes durante sua luta de organização dos seringueiros contra a transformação da floresta em pasto. Entre eles está a antropóloga Mary Allegretti, apontada como a mais importante pensadora a ajudar Chico Mendes.
Após sempre destacarem Chico Mendes como um líder nato e dono de uma visão de mundo que estava muito à frente de seu tempo, houve o consenso em quase todos os debates de que o atual momento de avanço contra a preservação da floresta requer o ressurgimento dos “empates”, o movimento pacífico formado pelos seringueiros que, juntos, formavam uma corrente humana diante de máquinas e homens contratados para derrubar a mata.
Além destes exemplos e tão importante quanto, Ângela Mendes considera legado fundamental a influência que Chico deixou entre as comunidades da floresta. “Hoje as comunidades possuem um acentuado senso crítico e sabem como se articular. Durante a pandemia, ninguém da reserva extrativista precisou de sacolões [cestas básicas] do governo porque lá dentro ninguém parou de produzir e de comercializar, garantindo a comida em casa e nas casas das cidades”, comenta ela.
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