Perfil: Martins, o lutador de vale tudo que prefere passar por mole

outubro, 07 2011

Martins, o lutador de vale tudo que prefere passar por mole
Por Warner Bento Filho, de Rio Branco

Francisco Correia Martins prefere passar por mole antes de sair no tapa com algum desafiante. Mas nem sempre foi assim. Atleta, na juventude Martins gostava de disputar lutas de vale tudo. “Agora parei com esse negócio, porque o homem não nasce para andar se esbofeteando. Hoje isso até me repugna. Só bato em alguém se for muito necessário. Prefiro passar por mole. O homem nasce para se respeitar e amar”, diz este acreano que nasceu, cresceu e envelhece sendo desafiado pela vida.

O último de seus desafios é presidir a Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis de Rio Branco (Catar), cargo que ocupa há dois anos. Como presidente da Catar, Martins participou na última semana da Oficina para a Construção de Plano de Manejo Integrado de Resíduos Sólidos de Rio Branco. Lá, contou que, antes de virar catador, trabalhou de tudo na vida, rodou a Amazônia e participou até de ações armadas em Xapuri, a terra de Chico Mendes, a quem conheceu na militância em defesa dos seringais.

A guerra na Amazônia

Filho de um soldado da borracha e de uma amazonense, Martins nasceu no Seringal Ouro, a 28 de junho de 1959. O pai, Eliseu José de Oliveira, ou Amadeu José de Oliveira, como consta no documento, foi um dos cerca de 50 mil brasileiros que se alistaram para extrair borracha na Amazônia entre 1943 e 1945. Enquanto os Estados Unidos e seus aliados lutavam nos campos de batalha da Europa, nordestinos pobres eram chamados a extrair borracha na Amazônia para ser enviada aos Estados Unidos. A Malásia, principal fornecedor mundial, estava ocupada pelos japoneses.

Martins não sabe se o pai é cearense ou paraibano. Naquele tempo, todo o trabalhador que vinha do Nordeste era apenas “arigó”.

De sua terra seca no Nordeste, Eliseu, ou Amadeu viajou por meses, de ônibus e de barco, até chegar às margens do rio Caeté, para trabalhar na colocação que lhe deram. Na bagagem, pouca coisa além de algumas peças de roupa, chapéu de palha, alpercatas, um prato fundo, uma colher, um garfo, uma caneca, uma rede e um maço de cigarros colomy.

Os soldados, dizia-se, voltariam para casa ricos e reconhecidos como heróis da Pátria. Mas a maioria deles foi enterrada na floresta, abatidos por malária, febre amarela, hepatite, falta de médico ou assistência. Os sobreviventes, endividados e empobrecidos, nunca voltariam para casa. Nem seriam reconhecidos como heróis da Pátria.

Isolados na Amazônia, os soldados da borracha foram facilmente explorados por patrões, seus jagunços e gatos. Os salários eram trocados por comida e outros bens na loja do seringal. Quem não produzisse não comia.

Quando a guerra acabou, em 1945, Eliseu, ou Amadeu não tinha dinheiro para voltar para casa e resolveu ir ficando pela Amazônia. “Bolou muito pelos seringais. Naquele tempo era assim. O sujeito arranjava uma colocação, aí já brigava com o patrão ou com o gato, se desgostava e já ia embora”, conta Martins. Até que foi parar no Seringal Ouro, município de Sena Madureira. Lá, conheceria a mãe de Martins, amazonense de Humaitá, que também tem um nome real e outro no documento. Conhecida como Raimunda Correia Martins, no papel é Raimunda Balbina Martins.

Infância no seringal

Martins, o filho, nem se lembra com que idade começou a trabalhar sangrando seringa e ajudando o pai na roça. “Quando me nasceram os dentes eu já trabalhava”, diz. “Cresci ajudando meu pai. Naquele tempo ele já dizia que eu era os pés e as mãos dele”, conta. Hoje, aos 86 anos e depois de sofrer um acidente vascular cerebral, o soldado da borracha não caminha e move os braços com dificuldade. Mora com o filho, que continua sendo seus pés e suas mãos.

Quando era criança no Seringal Ouro, nas poucas horas vagas Martins usava seus pés e mãos para nadar no igarapé e correr pelas matas. Quando completou oito anos, a família se mudou do Seringal Ouro, indo para uma colônia, mais perto da cidade. O seringal ficava a dois ou três dias de viagem. A colônia, a três horas de remo. Investiram na agricultura. O excedente era embarcado na canoa para ser vendido em Sena Madureira: banana, galinha, porco, pato, jerimum, carvão.

Na adolescência, Martins já queria conhecer mundo. “Comecei a tomar conta da minha vida e vim para o lado de Rio Branco, trabalhando em fazendas”, diz. Andou pelo Mato Grosso, Amazonas, Rondônia. Foi operador de motosserra, lapidador de madeira, derrubou mato, fez mourão e postes, cortou muita cariúba e itaúba, resistentes e fortes como um touro. “Arranquei um poste enterrado há 25 anos e estava do mesmo jeitinho”.

Revoluções em Xapuri


Em suas andanças pelas fazendas da região, Martins chegou a Xapuri, terra de Chico Mendes, nos anos 1980. “Quando cheguei, a história era bem quente”, conta. Continuou trabalhando em fazendas, inclusive nas propriedades de Darly Alves da Silva, condenado como mandante do assassinado do líder seringueiro. “Comigo ele foi correto, me pagou direitinho”, lembra Martins, que conheceu Chico Mendes nas mobilizações organizadas pelo Sindicato dos Seringueiros, conhecidas como “empates”, ou como “revoluções”, como diz Martins.

Martins se lembra de uma “revolução” de que participou, liderada pelo “Compadre Simplício”, que era delegado do Sindicato no Seringal do Rio Xapuri.

“Compadre Simplício foi chamando o povo e juntou uns 45 homens. Nos reunimos todos na casa dele, cada qual com uma espingarda, um rifle papo amarelo, um revólver velho. Saímos pelos varadouros, assim que amanheceu o dia. Chegamos no seringal São Pedro perto das 11h. Estava o gato com um grupo de trabalhadores, gente como nós, cortando o mato para abrir fazenda. Precisavam de trabalho, assim como nós precisávamos. Mas com a conversa acharam de parar a desmatação. Chico Mendes era um líder. Não fosse ele, o nosso Acre hoje seria só mesmo capim e fazenda”.

Mas a vida de motosserra, revoluções e ações armadas cansaram Martins, que decidiu morar na cidade. Foi para Humaitá, no Amazonas, terra da mãe dele. “Não queria mais trabalhar para os outros. Queria trabalhar para mim mesmo. Então aprendi a catar latinha. Quando voltei para Rio Branco, já comecei a catar. Hoje cato de tudo.

Foi em Humaitá que Martins casou-se com Maria Feitosa da Silva Martins. Tiveram cinco filhos, mas apenas dois sobreviveram: Sara, que tem 13 anos, e Sabrina, de nove.

Os outros três morreram logo depois de nascer. “Morreram nas mãos dos médicos”, lamenta Martins. “Acho que foi falha médica. Mas o médico não é tudo. Ele tem que ter aparelho, tem que ter assistência. Não fizemos confusão porque isso não traz de volta a vida de ninguém”, diz.

“Não ligo. Só observo”

Martins catava de tudo pelas ruas de Rio Branco e vendia num sucateiro, no bairro Bosque. Levava a vida assim até que um dia, no ano de 2005, aparece alguém, um rapaz, querendo conversar com ele. Era um funcionário da Prefeitura. “Veio falar de associação, cooperativa. Eu, ignorante, não dei muita prosa. Ele pediu nome, endereço, mas dei tudo errado e fui embora. Aquilo tudo para mim era coisa do outro mundo. Mas depois, em casa, eu deitado para dormir fiquei pensando. Aquele cara veio falar comigo para dizer que eu podia trabalhar menos e ganhar mais. Talvez não fosse tão ruim”.

Algum tempo depois, os dois se encontraram no mesmo lugar. Então Martins deu nome e endereço corretos e já foi convidado para uma reunião de catadores. “Desde então, nunca mais faltei a uma reunião sequer”.

O grupo de 16 pessoas já formou uma associação, que depois se transformou em cooperativa, a Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis de Rio Branco.

Hoje, Martins costuma sair de casa, no bairro Montanhês, entre 1h e 3h da madrugada, “para evitar o sol”. Sai em direção ao galpão do Catar, catando latinha, plástico, papelão, vidro. Chega entre 7h e 9h, quando vai separar e prensar o material ou fazer a comida para os companheiros. “Cada um leva um quilo de arroz, farinha, a cooperativa inteira e a gente come”.

Martins está satisfeito com a profissão. “Meu trabalho é reconhecido, digno, importante para a limpeza de nossas cidades. Diminui o volume de lixo que vai para o aterro. E é de onde eu tiro o sustento para mim e para minha família”.

O ex-lutador de vale tudo diz que ainda é vítima de preconceito, às vezes até entre os companheiros de profissão. Mas ele prefere passar por mole. “Não ligo para isso. Sei que o trabalho que faço é importante. Então não ligo, só observo”.
O presidente da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis de Rio Branco (Catar), Francisco Martins, já participou até de ações armadas em Xapuri
O presidente da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis de Rio Branco (Catar), Francisco Martins, já participou até de ações armadas em Xapuri
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