Marina Silva: a filosofia na prática

outubro, 25 2008

Maria Osmarina Marina da Silva de Lima, ou Marina Silva, não é filósofa por formação. Talvez por isso, ela passeia com desenvoltura desconcertante entre os planos ideal e real. Mais do que isto: ela estabelece uma sólida ponte entre esses dois mundos, apontando soluções terrenas para problemas reais, filosóficos ou forjados da questão ambiental.
A maioria das pessoas comuns idealiza filósofos como pessoas desgarradas do mundo real, vivendo entre o céu e a terra, num plano ideal, alheios às agruras do dia-a-dia. E talvez realmente o sejam, em parte, por seu mister de conhecer e explicar a alma humana e o sentido das coisas.

Maria Osmarina Marina da Silva de Lima, ou Marina Silva, não é filósofa por formação. Talvez por isso, ela passeia com desenvoltura desconcertante entre os planos ideal e real. Mais do que isto: ela estabelece uma sólida ponte entre esses dois mundos, apontando soluções terrenas para problemas reais, filosóficos ou forjados da questão ambiental.

Possivelmente, a sensibilidade e a realidade de uma infância e adolescência muito difíceis tenham amalgamado nela o sonho e o pragmatismo.

Nascida há 50 anos na localidade Breu Velho, do Seringal Bagaço, a 70 km de Rio Branco (AC), Marina Silva viveu a infância e parte da adolescência na dura coleta da seringa. Foi alfabetizada somente aos 16 anos, quando se mudou para Rio Branco, para trabalhar como doméstica. Até então, a natureza, a floresta e os saberes de seu povo foram seus mestres, despertando nela não somente o amor pelo ambiente em que vivemos, mas a sensibilidade para traduzi-lo.


Formou-se em História pela Universidade Federal do Acre aos 26 anos e iniciou sua carreira política em 1988. Hoje, cidadã global, Marina é uma das mulheres mais premiadas e homenageadas do planeta, colecionando mais de 50 títulos e comendas.

A atual Senadora da República segue sua luta em defesa da sustentabilidade socioambiental, depois de passar pelo Ministério do Meio Ambiente, enfrentando as forças conservadoras que compõem o cenário rural – e principalmente o cenário Amazônico – brasileiro. Ali, o Brasil percebeu que, dentro da aparentemente frágil compleição física de Marina Silva convivem uma cidadã da floresta, suave e ponderada, e uma guerreira poderosa e aguerrida.


Entrevista: Marina Silva

A seguinte entrevista foi concedida com exclusividade ao jornalista Gadelha Neto do WWF-Brasil por ocasião da premiação de Marina Silva com a medalha Duque de Edimburgo para Conservação 2008, oferecida pela Rede WWF em outubro, na Inglaterra.

Senadora, qual é a sua avaliação do momento atual do movimento ambientalista, no que se refere ao alegado antagonismo entre desenvolvimento e conservação?

Primeiramente acho não devemos pensar em meio ambiente e desenvolvimento como opostos. Acho que o grande desafio deste século é viabilizarmos a proteção com desenvolvimento e o desenvolvimento com proteção dos recursos naturais. Nos últimos dez anos, o movimento ambientalista tem avançado significativamente nesta direção e eu acho que os que continuam alegando esta oposição são aqueles que têm uma visão puramente desenvolvimentista.

Os ambientalistas já compreenderam que o grande desafio para a mudança é atuarmos na direção de mudar modelos de desenvolvimento – de um modelo insustentável para um modelo sustentável – que seja capaz de comportar todas as dimensões da sustentabilidade, nos aspectos econômico, social, cultural, político, ético e, até mesmo, do ponto de vista da sustentabilidade estética, por que as mudanças que nós fazemos na paisagem natural são ‘desconstitutivas’ da nossa identidade, da nossa relação uns com os outros e com a própria natureza.

Então eu acho que o grande desafio é a realização da mudança do modelo de desenvolvimento a partir da quebra dos paradigmas de que os recursos naturais eram infinitos que de nós havíamos de fazer todo o esforço para dominarmos a natureza e, com isto, nos proteger dos fenômenos que não controlávamos. Buscando superar aquilo que nos limitava, enquanto seres humanos, nós acabamos nos deparando com o limite da própria natureza.

Eu acho que o desafio é compreendermos que estamos vivendo, de fato, a era dos limites, uma era que remete o homem a uma nova visão do que é riqueza, do que é felicidade e, sobretudo, do quê nos coloca como sujeito na relação uns com os outros, conosco mesmos e com a própria natureza.

Como a senhora avalia, em nível global, a questão das mudanças climáticas?

Mais uma vez, a mudança do modelo de desenvolvimento é o grande desafio dos países desenvolvidos e dos países em desenvolvimento. Para os países desenvolvidos, isto significa ‘descarbonizar’ suas economias, ou seja, mudar a matriz energética de fóssil para renovável.

Já nos países em desenvolvimento, esta mudança significa fazer com que suas matrizes energéticas sejam diversificadas e que o uso dos recursos naturais se dê em bases sustentáveis. Para isto, eles vão precisar de apoio, de transferência de recursos e de tecnologia, porque a contribuição que nós vamos dar para reverter o processo de mudanças climáticas vai ajudar o planeta inteiro.

Os países desenvolvidos já estabilizaram suas economias, já atenderam às necessidades básicas de suas populações. Portanto, para eles, teoricamente, é mais fácil desenvolver, agora, um processo de redução de emissões. Já os países em desenvolvimento têm o desafio de reduzir as emissões e, ao mesmo tempo, crescer economicamente para atender às demandas de suas populações.

Então, nós temos desafios de duas naturezas: nos países desenvolvidos, que têm emissões históricas e atuais cuja redução é obrigatória; e nos países em desenvolvimento, que têm pequena emissão histórica, mas já apresentam emissões atuais altíssimas que devem ser reduzidas. Isto é válido para o Brasil, China, México, Índia, enfim todos os países em desenvolvimento que já são grandes emissores.

A senhora é otimista com relação ao futuro socioambiental e à sustentabilidade do planeta?
Acho que nesta situação a gente tem que extrapolar o binômio otimista-pessimista. Temos é que ser persistentes. Persistentes em políticas que sejam estruturantes, que nos levem, em primeiro lugar, a nos mover a partir de uma visão, e a visão é a de uma inflexão civilizatória que mude os processos de como temos produzido, como temos consumido e como temos destinado os resíduos oriundos da nossa produção.

Falo também de uma inflexão civilizatória que seja capaz de, a partir de um processo democrático e transparente, viabilizar para a sociedade os meios de assumir a proatividade política, pautando a agenda estratégica para o país e para o planeta, uma agenda que tenha o compromisso de todos os governantes – porque as mudanças serão a médio e longo prazos, de sorte que o compromisso com a redução, com a diversificação da matriz energética e com a proteção da biodiversidade é algo que deve ser perseguido por todos os governantes, independentemente de seus alinhamentos políticos – , assim como o estabelecimento de uma estrutura que seja capaz de comportar a contribuição de ricos e pobres, de cidadãos e empresas, de cientistas e de organizações da sociedade: uma estrutura que tenha, ao mesmo tempo, firmeza de propósitos no encaminhamento da gestão destes processos e, ao mesmo tempo, seja flexível para comportar todas estas contribuições e ser capaz de dar respostas rápidas em situações de emergência.

É, também, fundamental que não se perca de vista que existem esforços nacionais a serem feitos, esforços de pessoas de grupos e de regiões, mas a crise só se resolverá no contexto de uma agenda multilateral forte e comprometida. Não haverá salvadores da pátria. Trata-se de um esforço conjunto, horizontal, em que cada um tem suas responsabilidades para o alcance de uma meta comum: de salvar as condições objetivas que promovem a vida no planeta.

O que a senhora destacaria como realização durante sua gestão à frente do Ministério do Meio Ambiente?

Eu acho que uma das coisas importantes foi a visão de política ambiental que nós levamos para o Ministério. Nós partimos do princípio de que deveríamos encaminhar a política de meio ambiente a partir de diretrizes de controle e participação sociais, desenvolvimento sustentável, de fortalecimento do sistema nacional de meio ambiente e de política ambiental transversal.

Com estas diretrizes, começamos a trabalhar as políticas de forma prática. Talvez o melhor exemplo seja o plano de combate ao desmatamento, em que todas as diretrizes atuaram conjuntamente. Nós percebemos que o desmatamento, para ser enfrentado, precisava de uma ação transversal, envolvendo diferentes setores do governo. Precisava de uma estratégia que fosse duradoura e estruturante, bem como de uma visão de longo prazo.

O plano se baseou em três eixos: o combate às práticas ilegais, o ordenamento territorial e fundiário e o apoio às atividades produtivas e sustentáveis.

No eixo de combate às práticas ilegais, conseguimos apreender um milhão de metros cúbicos de madeira, botar mais de 700 criminosos na cadeia, desmontar mais de 1.500 empresas ilegais, inibir cerca de 37 mil propriedades de grilagem, propriedades ilegais alem de todo um esforço de ampliação das ações de fiscalização e de inteligência, combinando o trabalho do órgão ambiental do Ibama com a Polícia Federal, com o Ministério da Defesa. Enfim: os setores que lidam com a agenda de combate a ilegalidades.

Na agenda de ordenamento territorial e fundiário, criamos 24 milhões de hectares de unidades de conservação, homologamos dez milhões de hectares de áreas indígenas, e aprovamos a Lei de Gestão de Florestas Públicas, criando os distritos florestais sustentáveis, visando ao uso sustentável da madeira, com certificação, com manejo florestal, para valorizar a floresta em pé.

Na diretriz de apoio às atividades sustentáveis (como, no meu entendimento, dependia de outros setores, sobretudo da área de agricultura, de energia, de transporte), esta agenda não caminhou com a mesma velocidade.

Mesmo assim, conseguimos uma redução de desmatamento de 57%. Durante três anos consecutivos, o desmatamento caiu de 27 mil quilômetros quadrados em 2004 para 18 mil em 2005, depois 14 mil em 2006 e 11,2 mil quilômetros quadrados em 2007.

Ao final de 2007, as forças predatórias novamente se organizaram e começou a haver aumento do desmatamento novamente. Medidas muito fortes foram tomadas e essas medidas provocaram muitas pressões para sua revogação, por setores que eu considero na contramão da história, aqui no Brasil.
Foi no contexto dessas pressões que eu pedi para sair do governo. No meu entendimento, minha saída fez com que a opinião pública nacional se manifestasse de uma forma fantástica, apoiando as medidas que haviam sido tomadas – e as medidas eram de criminalização de toda a cadeia produtiva de base ilegal, vedando crédito de bancos públicos e privados para qualquer atividade ilegal na Amazônia, decretação de moratória em 36 municípios que mais desmatam e o condicionamento de que tudo isto só voltaria ao normal com a legalização de todos os proprietários embargados. Se isto for consolidado, eu acredito que teremos uma quebra estrutural do desmatamento. O grande desafio é que estas medidas sejam consolidadas e que se faça uma mudança de modelo de desenvolvimento.
A senadora Marina Silva segue sua luta em defesa da sustentabilidade socioambiental, depois de passar pelo Ministério do Meio Ambiente.
© WWF-Brasil / Juvenal Pereira
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