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O soldado Geovane da Conceição Gomes combate o fogo e resgata animais na região de Cruzeiro do Sul

No Acre, mudança na dinâmica de queimadas impõe novos desafios a bombeiros

Em 2020, o Estado bateu recordes de focos de fogo, que avançaram sobre suas regiões mais conservadas; profissionais que combatem as chamas atuam também no resgate de animais

 

19 de novembro de 2020

 

Desde o início do ano até o dia 18 de novembro, o Acre teve 9.151 focos de queimadas detectados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Com esse número, apesar de corresponder a apenas 3,2% do território da Amazônia Legal, o Acre foi responsável por 9,4% dos 96.996 focos de queimadas detectados nos nove estados da região em 2020. O aumento das queimadas no estado foi de 35% em relação ao mesmo período de 2019, quando foram detectados 6.770 focos. 

Em 2020, o Acre bateu o recorde da década em área queimada. Foram 265 mil hectares queimados entre janeiro e a primeira semana de novembro, de acordo com o Projeto Acre Queimadas, da Universidade Federal do Acre. O número é quase 40% maior do que o registrado no mesmo período de 2019 (190 mil hectares) e supera em mais de 15% o recorde dos últimos 10 anos, em 2020, quando foram incendiados 230 mil hectares.

Metade dos focos de queimadas no Acre ocorreu em municípios que ainda detêm extensas áreas de florestas preservadas, incluindo alguns sem acesso rodoviário e que até pouco tempo atrás não eram motivo de grande preocupação. Os municípios de Jordão e Marechal Thaumaturgo, por exemplo, tiveram em 2020 aumento de 20% e 94%, respectivamente, no número de queimadas em comparação ao mesmo período de 2019. 

Isso marca uma mudança na dinâmica do processo de devastação no estado, com o fogo se expandindo de regiões já bastante pressionadas pela agropecuária para as mais conservadas, causando danos irreparáveis à fauna e à flora. O Vale do Juruá, que concentra boa parte das unidades de conservação (UCs) e terras indígenas acrianas e possui uma das mais ricas biodiversidades do mundo, é uma das áreas mais afetadas. 

Entre as UCs federais do Acre com mais queimadas, a Reserva Extrativista do Alto Juruá foi a segunda colocada em 2020, com 139 focos. Já no Parque Nacional da Serra do Divisor chama a atenção o aumento de mais de 70% no número de queimadas este ano: foram 110 focos em 2020 e 64 no mesmo período de 2019. O município de Cruzeiro do Sul teve 448 focos em 2020, um aumento de quase 60% em relação ao mesmo período de 2019.

© Foto: Acre ao Vivo/Divulgaçào

No Parque Nacional da Serra do Divisor chama a atenção o aumento de mais de 70% no número de queimadas este ano: foram 110 focos em 2020 e 64 no mesmo período de 2019.

O desafio de combater o fogo

Com essa nova dinâmica, debelar o fogo naquela região é cada vez mais desafiador. Quem faz esse trabalho é o 4o Batalhão de Educação, Prevenção e Combate a Incêndio Florestal (BEPCIF) do Corpo de Bombeiros Militar do Acre. Formado por mais de 60 homens e mulheres, o grupamento ainda tem como atribuição apagar incêndios urbanos, além de realizar buscas e salvamentos de vítimas de afogamento nos rios e igarapés da Bacia do Juruá. 

Outra atribuição dos bombeiros é o resgate e captura de animais silvestres, trabalho que se intensifica no período das queimadas. Quando não são mortos pela ação direta do fogo ou pela inalação da fumaça tóxica, muitos bichos acabam fugindo para as áreas urbanas em busca de refúgio.  

O 4o Batalhão é responsável por atender ocorrências em cinco municípios: Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima, Marechal Thaumaturgo, Porto Walter e Rodrigues Alves. Dois deles (Marechal Thaumaturgo e Porto Walter) são acessíveis apenas via fluvial ou aérea. Os casos que necessitam da presença dos bombeiros o deslocamento é feito por “voadeiras”, subindo o rio Juruá em um percurso que pode durar até um dia. Os bombeiros acrianos ainda atendem a chamadas mais graves nos municípios de Guajará e Ipixuna, ambos no estado do Amazonas. 

De acordo com o capitão José Dutra de Oliveira, comandante do 4º BEPCIF, em 2020 houve aumento nas ocorrências de captura de animais silvestres no perímetro urbano de Cruzeiro do Sul. Os casos mais comuns são de aves como araras e corujas, o que não ocorria com tanta frequência. 

“O Corpo de Bombeiros é o principal órgão que atua na questão de captura de animal silvestre. Este ano houve acréscimo no número de solicitações, em especial na época do verão. O desmatamento e as queimadas fazem com que os animais apareçam mais”, afirma o comandante Oliveira.

 

Na linha de frente, uma história de dedicação e orgulho

Desde 2015 integrando os quadros da corporação, o soldado Geovane da Conceição Gomes, de 37 anos, é um dos militares que atuam na linha de frente no combate ao fogo, no resgate e captura de animais. A formação acadêmica em biologia ajuda o bombeiro em seu trabalho de manejo da fauna silvestre. 

De acordo com ele, ao terem seus habitats destruídos pelo fogo os animais buscam refúgios em locais mais seguros. Nessa busca, acabam sendo vítimas de atropelamentos nas estradas e ruas das cidades. Como a região não dispõe de um Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), a fauna capturada, quando apresenta boas condições de saúde, é devolvida à natureza. 

“Devolvemos para uma área mais preservada onde exista alimento e água”, explica. “Quando pegamos animais ferido, não temos para onde levá-los. No quartel não há um local específico para abrigá-los e recuperá-los para depois fazer a reintrodução na natureza”. 

O soldado Geovane exerce a profissão com dedicação e orgulho. Natural de Cruzeiro do Sul, conhece as características da região como poucos. Uma de suas últimas conquistas foi a aprovação no curso de mergulhador, um dos mais desafiadores na carreira de bombeiro. Mergulhar em rios de águas barrentas é uma tarefa especialmente árdua. 

“Tanto faz você mergulhar de olhos abertos ou fechados, não tem a mínima diferença. Não se vê nada. Ainda é preciso ter cuidado pra não ficar preso entre os galhos das árvores”, diz Geovane, que cresceu pelos barrancos do rio Juruá. 

Nascido numa típica família de ribeirinhos da Amazônia, ele é o terceiro mais velho entre seis irmãos. Como sua mãe não tinha condições de criar todos, Geovane passou a infância num orfanato da cidade. Aos 12 anos passou a trabalhar como pescador nos barcos pesqueiros do rio Juruá. Passava dias – ou semanas a fio – subindo e descendo os rios e igarapés em busca dos melhores peixes. 

Ao completar os 18 anos, apresentou-se ao serviço militar. Passou sete anos no 61º Batalhão de Infantaria de Selva (BIS), do Exército, onde chegou ao posto de cabo. Ele estudava Biologia na Universidade Federal do Acre, quando foi dispensado do Exército. 

Além de bacharel em biologia, Geovane também é formado em um curso de técnico em enfermagem. Na área da saúde, trabalhou como agente de endemias durante o dia e, durante a noite, como vigilante em uma escola particular de informática. Em 2012, foi aprovado no concurso do Corpo de Bombeiros, mas não alcançou a pontuação suficiente para ser chamado logo na primeira convocação. 

“Em 2015 fizeram uma convocação e não pensei duas vezes ao deixar o trabalho de agente de endemias. Finalmente iria fazer aquilo que gostava, atuar na área militar. Ao mesmo tempo, lidar com o resgate de animais era uma forma de estar em contato com o reino animal que estudei na universidade”, afirma. Geovane conhece cada bicho da fauna amazônica – sabe na ponta da língua tanto os nomes populares quanto os científicos. 

Graças aos estudos na academia, ele sabe o local certo para a soltura de cada espécie capturada. “Tem que ser um lugar seguro, com disponibilidade de comida e água.” Estar longe da presença humana é outro critério para a segurança dos animais. Cada vez que faz uma operação de resgate de animais, Geovane faz questão de registrar tudo com a câmera do celular.

Apoio do WWF-Brasil 

Para apoiar este trabalho tão importante, o WWF-Brasil firmou parceria com o Corpo de Bombeiros do Acre, com o objetivo de fortalecer o combate às queimadas e aos incêndios florestais num Estado que ainda preserva 87% de sua floresta – embora ela esteja bastante ameaçada.  

Foram doadas 163 peças de combate ao fogo e equipamentos de proteção individual para a corporação – incluindo bombas flutuantes para captação de água, bombas costais, abafadores, sopradores, máscaras, luvas e capacetes. Carregadas como mochilas, as bombas costais armazenam até 20 litros de água e são importantes nessas localidades que não podem ser alcançadas pelas viaturas.